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Tese analisa a conexão entre literatos negros abolicionistas

em Especial
sexta-feira, 26 de abril de 2019
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Tese analisa a conexão entre literatos negros abolicionistas

Estudo desenvolvido no IFCH recebeu menção honrosa do Prêmio Capes de Tese 2015

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Além de Luiz Gama, Machado de Assis, José do Patrocício (da esq. para a dir.), a autora do estudo investigou as trajetórias de Ferreira de Menezes, Ignácio de Araújo Lima, Arthur Carlos e Theophilo Dias de Castro.

Manuel Alves Filho/Jornal da Unicamp
Fotos: Reprodução/Antônio Scarpinetti/Marc Ferraz/
Coleção Gilberto Ferraz/Acervo Instituto Moreira Salles

Além de Luiz Gama, Machado de Assis, José do Patrocínio (da esq. para a dir.), a autora do estudo investigou as trajetórias de Ferreira de Menezes, Ignácio de Araújo Lima, Arthur Carlos e Theophilo Dias de CastroPensadores e literatos negros desempenharam, durante a segunda metade do século 19, por meio da sua atuação na imprensa das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, importante papel nos debates públicos acerca da defesa dos direitos dos brasileiros, notadamente de pessoas negras livres, libertas e escravizadas. Mais que revelar trajetórias isoladas, as experiências desses sujeitos desvelam uma conexão entre eles, evidenciada, entre outros aspectos, pelo uso de estratégias similares ou pelas influências que uns exerceram sobre outros. Os dados constam da tese de doutoramento da historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, sob a orientação do professor Sidney Chalhoub. O trabalho recebeu menção honrosa do Prêmio Capes de Tese 2015.

De acordo com Ana Flávia, seu interesse pelo tema nasceu ainda na iniciação científica, quando travou contato com jornais da imprensa negra. O tema foi posteriormente aprofundado no mestrado. “Nas duas oportunidades, meu foco foram os jornais, mas senti a necessidade de falar sobre os sujeitos que estavam por trás dos textos. No doutorado, minha proposta inicial era analisar comparativamente as trajetórias de negros livres e letrados, que tiveram importante atuação na política e na cultura por intermédio da imprensa. Com o decorrer do estudo, porém, percebi que havia forte conexão entre eles e que isso precisava ser destacado”, explica.

Os personagens principais da investigação da historiadora foram Ferreira de Menezes, Luiz Gama, Machado de Assis, José do Patrocínio, Ignácio de Araújo Lima, Arthur Carlos e Theophilo Dias de Castro, embora muitos outros tenham dado destacada contribuição para o debate público em torno dos direitos dos brasileiros, de modo geral, e da defesa da causa abolicionista, de maneira mais específica. Conforme a pesquisadora, o diálogo entre esses literatos se dava tanto de modo direto quanto indireto. Falar sobre a imprensa do século 19, lembra ela, é falar sobre literatura, visto que a linha que separava uma atividade de outra era muito tênue.

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A historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, autora da pesquisa: “Um dos desafios ao longo da tese foi dar conta da quantidade de sujeitos negros que tiveram reconhecimento naquele período, mas que foram posteriormente preteridos da narrativa hegemônica sobre o processo abolicionista”Assim, boa parte dos textos veiculados pelos jornais da época era produzida por literatos, que abordavam diferentes assuntos em seus textos, como política, literatura, música, teatro, artes plásticas etc. Tais temas propiciavam aproximações entre esses autores. Além disso, alguns sujeitos com maior destaque naquele contexto exerceram influência sobre seus pares. “É o caso de Luiz Gama, cuja atividade inspirou, em boa medida, o grupo que fundou os jornais da imprensa negra em São Paulo”, pormenoriza a autora da tese.

Um dos nomes que não fazia parte da relação a ser pesquisada por Ana Flávia foi Ferreira de Menezes, personagem que a historiadora praticamente desconhecia, mas que se revelou uma das figuras centrais no movimento em defesa dos direitos dos negros. Filho de liberto e nascido no Rio de Janeiro, ele teve que acionar uma ampla rede de sociabilidade para poder se transferir para São Paulo, onde se formou em Direito. No Rio de Janeiro, Ferreira de Menezes manteve contato com destacadas figuras, entre elas Machado de Assis.

Naquele momento, compreendido pelo final da década de 1870 e início da década de 1880, Luiz Gama e Ferreira de Menezes eram as figuras essenciais no que se poderia classificar de ativismo pró-abolicionismo. Ambos, que eram amigos de José do Patrocínio, morreram poucos anos depois, o que abriu espaço para a projeção deste último. “Um dos desafios ao longo da tese foi dar conta da quantidade de sujeitos negros que tiveram reconhecimento naquele período, mas que foram posteriormente preteridos da narrativa hegemônica sobre o processo abolicionista. Um deles foi Vicente de Souza, tema central do meu pós-doutorado que está em andamento”, adianta Ana Flávia.

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Segundo ela, Vicente de Souza era um baiano de Nazaré das Farinhas, que se mudou para o Rio de Janeiro, onde cursou Medicina. Lá, dividiu a sua atuação entre as atividades de médico e professor. “O que eu estou investigando é até que ponto Vicente de Souza teve que priorizar a profissão de professor em detrimento da de médico. Trata-se de uma das figuras centrais da organização do movimento de trabalhadores na virada do século 19 para o 20. Também teve destaque no episódio da Revolta da Vacina. Durante a campanha abolicionista, Vicente de Souza foi responsável por disseminar a proposta do fim da escravidão entre os trabalhadores”, assinala.

A historiadora faz questão de observar que, embora alguns sujeitos tenham tido a sua experiência privilegiada por essa narrativa hegemônica, tal destaque somente foi alcançando graças à atuação de outros negros. Estes, prossegue a autora da tese, tinham obviamente como tema principal de seus artigos, contos e romances o combate à escravidão. Todavia, também abordavam outros assuntos, como a garantia da cidadania a todos os indivíduos. “Para promover essa defesa, várias estratégias eram acionadas. Ao fazerem isso, os jornais se aproximavam muito dos recursos empregados pela imprensa negra propriamente dita. Uma dessas estratégias era veicular informações sobre negros de destaque em outros países. Em 1883, por exemplo, José do Patrocínio fez o esforço para traduzir a biografia de Frederick Douglass, um abolicionista que teve papel fundamental na história dos Estados Unidos, publicada na Gazeta da Tarde”.

Ainda sobre as atividades dos literatos negros considerados na tese, Ana Flávia faz uma observação que considera importante. De acordo com ela, a direção da militância exercida por eles não era no sentido de propugnar a instalação de um nacionalismo negro. “Não se tratava de se propor a construção de um país negro, mas sim de defender a garantia dos princípios constitucionais. A ideia não era a de promover a divisão racial, mas sim exigir o respeito aos ‘talentos e virtudes’ de cada cidadão, termos usados na época”, explicita a historiadora.

Uma das figuras que mais mereceram destaque na tese de Ana Flávia foi Machado de Assis, como a própria autora reconhece. Ainda que exista quem entenda que o escritor não tenha mantido grande envolvimento com as questões raciais, vários estudos têm evidenciado o contrário. “A atuação de Machado de Assis na defesa da abolição e dos direitos dos negros fica muito clara quando acompanhamos o trânsito dele junto a outros literatos, como Ferreira de Menezes. Machado de Assis dedicou-se a dar visibilidade ao trabalho de Menezes em termos literários. Além disso, a imagem de Machado de Assis desconexo das lutas abolicionistas cai por terra quando observamos a interface do trabalho dele como o de José do Patrocínio, bem como está registrado em muitos de seus escritos. Ademais, a imprensa abolicionista reconheceu Machado de Assis como um importante colaborador da causa abolicionista, a partir da atuação dele como funcionário do Ministério da Agricultura”, relata.

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Vendedoras em mercado no Rio de Janeiro, em 1875: jornais da época fundamentaram pesquisaAo analisar todas essas relações, segundo a historiadora, foi possível perceber o amplo leque de diálogos existente entre literatos negros da segunda metade do século XIX. “A sensação que eu tive foi que, uma fez puxado um fio, outros vinham juntos. As conexões entre esses sujeitos ficaram muito evidentes”. Questionada sobre que aprendizados podem ser tirados dos dados revelados pelo seu trabalho, Ana Flávia afirma que esse tipo de reflexão sempre esteve presente ao longo da sua pesquisa. Ela considera que o grande problema do racismo e das práticas discriminatórias é a desumanização do sujeito discriminado. O ataque à humanidade das pessoas, diz, é de uma gravidade profunda.

Isso acontece, dentre outras formas, quando é negado às pessoas o direito de serem contraditórias, de terem medo, de expressarem momentos de incerteza e de alcançarem sucesso em suas ações. “No instante em que busco investigar esses literatos e a forma como eles lidaram com o problema do racismo, eu procuro evidenciar que não existe somente uma forma de ser negro no Brasil. É preciso entender que, como qualquer ser humano, o negro desenvolve diferentes trajetórias de vida, nas quais cabem conexões e desconexões. Afora isso, é necessário destacar que, ao contrário do que os costumes naturalizaram, a história da população negra não se resume à história da escravidão, muito pelo contrário. Assim, ao evidenciarmos esse espaço de liberdade e todos os problemas vividos na liberdade, nós enxergamos melhor o impacto do racismo”.

Frederick Douglass, abolicionista norte-americano, cuja biografia foi traduzida por José do Patrocínio: referências externasA análise da trajetória desses personagens na liberdade, reforça Ana Flávia, traz à tona a premência de se discutir como o racismo foi fundamental para a construção do que ela classifica de “cidadania capenga” no país. “A cidadania no Brasil é problemática justamente porque o racismo impôs limites a ela. Ora, se esses literatos, que eram livres, letrados e tinham uma destacada atuação política e cultural, eram cotidianamente colocados em xeque, é preciso levar em conta o impacto do racismo na construção da cidadania brasileira. Ele é, sim, constitutivo da experiência nacional. Sem este reconhecimento, torna-se impossível estabelecer um debate franco sobre a questão”, pontua.