Senado debate limitação da internet fixa
Para entidades de defesa do consumidor, provedor não pode reduzir velocidade de quem atinge limite de franquia
Senadores criticam operadoras e Anatel sobre intenção de limitar acesso à internet. |
Guilherme Oliveira/Ag. Senado/Especial Cidadania
No último dia 22, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) proibiu que as empresas provedoras de internet criem franquias limitadas nos planos de banda larga fixa. A decisão representou um respiro no debate que havia se alastrado pelas redes sociais nas semanas anteriores e que chega ao Senado: a limitação do acesso à internet e o papel da regulação do setor.
Uma audiência pública sobre o assunto acontecerá nesta terça-feira (3) com representantes da Anatel, das empresas, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e de entidades de defesa do consumidor que protestam contra a ideia de limitar os planos de internet fixa.
O evento deve mobilizar diversos senadores, uma vez que três comissões estão envolvidas: a de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática (CCT), a de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle (CMA) e a de Serviços de Infraestrutura (CI).
— Ainda estamos num início de estudos e de avaliação. Essa audiência, com tantas autoridades representativas, vai permitir que tenhamos uma ideia do que cabe e do que não cabe. Esse assunto ainda é novo para nós. A única coisa que não é nova é que, no Brasil, se costuma cobrar, cobrar e cobrar o tempo todo — diz o senador Lasier Martins (PDT-RS), presidente da CCT.
Apesar de ser novo no Senado, o assunto já é familiar para muitos usuários da internet. No início de março, começaram a circular notícias de que alguns dos grandes provedores se mobilizavam para incluir nos contratos de internet fixa as franquias limitadas, que restringem a qualidade da conexão a um determinado volume de uso.
As três maiores empresas do país já comercializam planos com franquias, mas não aplicam rigorosamente as sanções, de modo que a perda de qualidade na conexão, quando há, é geralmente imperceptível.
O posicionamento da Anatel tem sido confuso desde que o assunto ganhou força. O presidente da agência reguladora, João Batista de Rezende, chegou a declarar em abril que “a era da internet ilimitada acabou” e que a adoção de planos limitados seria inevitável. Quatro dias depois, a Anatel decidiu proibir a cobrança de franquias por tempo indeterminado.
O tema será analisado pelo Conselho Diretor da Anatel, em data ainda não anunciada. A relatoria está com o conselheiro Otávio Luiz Rodrigues Junior. Em razão dessa transferência da matéria para a órbita do Conselho e como a deliberação ainda não aconteceu, a Anatel não manifestou posição oficial sobre o caso quando procurada pela Agência Senado.
A Vivo já anunciou que nos contratos firmados a partir deste ano trabalharia com as mesmas regras já impostas à internet móvel. A penalização por excesso de consumo de dados só começaria a valer em 2017, e contratos anteriores não seriam afetados. A empresa diz que ainda não pune os usuários que esgotam a franquia e afirma que cumpre todas as determinações legais e regulatórias.
A Net, operadora de internet que abrange a maior fatia do mercado brasileiro, também garante que não fez alterações nas políticas e nas características dos planos — alguns dos quais já incluem franquias. A Oi não enviou resposta aos questionamentos até a conclusão desta edição.
As outras três empresas — Algar, Sky e TIM, que detêm pelo menos 1% do mercado nacional — informaram que não adotam planos de banda larga fixa com franquias limitadas e não têm planos de fazê-lo.
Especialistas dizem que lei precisa ser modificada
Antes de barrar temporariamente os planos limitados, a Anatel havia sinalizado que não vê impedimentos legais para a inclusão de franquias e penalizações à navegação nos contratos, desde que atendidas algumas condições: as empresas precisam submeter os planos à aprovação da agência, oferecer ao cliente mecanismos para acompanhar o consumo e ofertar também planos ilimitados.
No entanto, há quem questione a interpretação de que a lei permite a limitação da conexão à internet. A advogada Maria Inês Dolci, coordenadora da entidade de defesa do consumidor Proteste, entende que a Anatel nem sequer deveria estar tratando do assunto.
— A Anatel quer ter a conexão de internet no bojo da sua atribuição, mas ela não tem previsão para falar sobre isso — observa.
A Lei Geral das Telecomunicações, que criou a Anatel, é de 1997 e não faz menção a serviços de internet, que ainda eram muito limitados naquela época.
O pesquisador Rafael Zanatta, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), pede um novo regime jurídico que reconheça a importância que a internet adquiriu para a sociedade neste início de século.
— O Marco Civil da Internet, de 2014, reconhece a internet como essencial para a cidadania. Não é uma questão de consumo. É uma concepção de democracia e participação — argumenta.
Zanatta explica que a Lei Geral das Telecomunicações criou a distinção entre os regimes público e privado de telecomunicações, interpretando os serviços do regime público como essenciais e submetendo-os à obrigação de universalização. Só a telefonia fixa foi classificada como serviço de regime público. O pesquisador do Idec defende que a internet em banda larga receba a mesma caracterização.
Para Maria Inês Dolci, o tratamento inadequado que se dá à internet na legislação cria confusão no processo regulatório — que, além da Anatel, é feito pelo Ministério das Comunicações e pelo Comitê Gestor da Internet.
— Falta estabelecer quem faz o quê, para que não haja duplicidade. O consumidor não pode ser prejudicado porque os órgãos não se entendem.
Sem uma atualização, alerta Maria Inês, o serviço da internet corre o risco de perder os avanços que já conquistou.
— A internet móvel já está estabelecida e estamos falando de internet fixa. Estamos retrocedendo em termos de acesso.
O Marco Civil da Internet, porém, não é visto unanimemente como uma ferramenta benéfica. Camilo Caetano, especialista em tecnologia da informação e diretor do Instituto Liberal de São Paulo (Ilisp), argumenta que a lei contribuiu para que os planos limitados entrassem no radar das operadoras.
Ele explica que os provedores de internet usam uma técnica chamada traffic shaping para regular o fluxo de dados em momentos de pico de acessos. Ela consiste em controlar a movimentação de pacotes de dados, inclusive retardando ligeiramente a conexão, de modo a equilibrar a circulação e evitar sobrecarga. A neutralidade de rede, obrigação imposta pelo marco civil, impede essa prática.
— Os usuários não conseguem acessar ao mesmo tempo os serviços a velocidade ultrarrápida. A infraestrutura das operadoras é finita. Quando o Marco Civil entrou em vigor, as operadoras ficaram proibidas de fazer traffic shaping e isso fez aumentar o consumo. Sem a opção de restringir o consumo para alguns aplicativos, elas não têm escolha a não ser cortar a internet inteira.
Qualidade da conexão e infraestrutura ainda são insuficientes
O senador Lasier Martins ressalta que o principal problema das telecomunicações no Brasil é a qualidade do serviço. Segundo especialistas, um dos fatores que contribuem para a má qualidade é a concentração do mercado. Net, Vivo e Oi detêm mais de 85% das conexões à internet.
Rafael Zanatta, do Idec, acredita que as grandes operadoras adquiriram muito poder de influência sobre a Anatel:
— As empresas não mostram estudos. Querem passar a falsa ideia de que existe um consenso mundial pelo modelo de franquia de dados. É mentira. A Anatel não pode aceitar esse discurso sem pressionar para que empresas apresentem análises e provas.
Zanatta aponta que, em países com mercados de telecomunicações mais amplos, as franquias são um fator de perda de clientes. Segundo ele, isso demonstra que os planos limitados só são interessantes em mercados oligopolizados.
Camilo Caetano, do Ilisp, argumenta que as normas da Anatel são o principal fator de concentração de mercado, devido ao efeito que produzem de limitar a concorrência através de procedimentos burocráticos complexos.
Essa opinião é compartilhada pelo programador e comunicólogo João Paulo Apolinário Passos, colaborador do portal Mercado Popular:
— Apenas as grandes corporações têm a capacidade real de bancar os custos de compreender, processar e executar todas as regulamentações. Essa é a primeira barreira de entrada para os pequenos players. Quando você hiper-regula um setor, por melhores que sejam as intenções, temos menos prestadores de serviço no mercado. Será que vale a pena esse sacrifício em prol de alguns oligopólios? — questiona.
Rankings mundiais
O Brasil é o quarto país mais conectado do planeta, segundo o levantamento Internet Live Stats, mas está na 93ª posição no quesito velocidade média da conexão, de acordo com o relatório State of the Internet, com uma taxa de transmissão de 3,6 megabits por segundo. A Coreia do Sul, líder do ranking, tem acesso a uma velocidade média de 20,5 megabits por segundo.
Como solução, Apolinário sugere um modelo descentralizado, em que a infraestrutura física em nível macro seria provida por empresas diferentes daquelas que fazem a conexão local.
— Uma empresa seria responsável pela infraestrutura tecnológica, ou seja, trazer os backbones e “puxar” os cabos de internet que vêm ao Brasil por diversas fontes ultramarinas e dessas fontes até centrais e servidores nas cidades. Essa empresa então alugaria esses serviços para operadoras locais, descentralizadas.
Nesse modelo, provedores de internet não precisariam ter uma grande rede própria. Isso possibilitaria a entrada de empresas com investimento menor na área de prestação direta de internet, aumentando a concorrência. A implementação dele, ressalta Apolinário, requereria uma desregulamentação do setor direcionada aos pequenos e médios provedores e um corte de subsídios federais às grandes corporações de telefonia.
O empresário Felipe Trevisan é fundador e CEO de uma empresa da Região Metropolitana de São Paulo que trabalha dessa forma, ainda em fase de testes. A Reabra é dona de uma rede de fibra óptica que aluga para pequenos provedores locais. Por enquanto, eles atendem apenas o mercado corporativo, mas a experiência tem sido positiva.
— A pessoa acessa o nosso portal, compara as ofertas, escolhe provedor e velocidade e compra o serviço on-line. O grande negócio é que o provedor enxerga a nossa rede como se fosse a rede dele.
Na avaliação de Trevisan, a concentração do mercado alimenta as dificuldades estruturais porque as grandes empresas de telecomunicação ocupam todos os níveis de rede e não as compartilham.
Rafael Zanatta, do Idec, afirma que as operadoras evitam direcionar esforços à banda larga fixa, mais cara, e focam na móvel. O subinvestimento alimenta a defesa dos planos limitados, que traz cobrança adicional.
Para Lasier Martins, é importante incentivar a iniciativa privada, mas liberalização excessiva pode fazer com que o serviço perca seu caráter público e essencial. Segundo o senador, é necessário manter uma estrutura regulatória e normatizadora que caiba ao governo.