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Prédio do Museu Nacional já preocupava Senado do Império

em Especial
sexta-feira, 05 de outubro de 2018
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Prédio do Museu Nacional já preocupava Senado do Império

Em 1827, nos primórdios do Império, o senador Marquês de Caravelas (BA) pediu a palavra e, da tribuna do Palácio Conde dos Arcos, a sede do Senado, no Rio de Janeiro, propôs aos colegas um exercício de imaginação: “Suponha-se que sucede haver um incêndio ou que qualquer outro acidente funesto destrói grande parte do Paço de São Cristóvão”. O fogo temido por Caravelas realmente ocorreria — mas 191 anos mais tarde, em 2018

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Foto: 

O Paço de São Cristóvão na época de Pedro I, quando contava com uma torre e dois pavimentos; sob Pedro II, teria duas torres e três pavimentos. Jean Baptiste Debret

Ricardo Westin/Arquivo S/Agência Senado

No Império, o Paço de São Cristóvão foi a residência oficial de dom João VI, dom Pedro I e dom Pedro II. Na República, passou a abrigar o Museu Nacional — varrido por um incêndio no mês passado. Do prédio histórico, só sobraram as paredes. O teto e os pisos desabaram. As chamas engoliram e incineraram milhares de peças do acervo. Antes da catástrofe, o Museu Nacional era a maior instituição de história natural e antropologia da América Latina.

Ainda não se sabe o que provocou o incêndio. Para os diretores do museu, a grande causa foi a escassez de verbas. Os detectores de fumaça estavam estragados, o que retardou a ação dos bombeiros. Não havia sprinklers (chuveiros acionados pela fumaça). Os hidrantes estavam secos. Dos poucos brigadistas, nenhum trabalhava naquela noite. O prédio e o acervo não tinham seguro.

Foi para evitar uma catástrofe desse tipo que Caravelas recorreu ao mórbido exercício de imaginação. Na visão dele, o Senado deveria aprovar uma lei obrigando o governo a custear toda e qualquer obra de conservação do Paço de São Cristóvão. Outra corrente defendia que o dinheiro saísse do bolso do próprio Pedro I, do salário que o Parlamento lhe destinava todo ano.

Documentos de 1827 mantidos sob a guarda do Senado mostram que a primeira corrente teve mais apoio no Plenário. Caravelas argumentou: “Como há de Sua Majestade mandar reparar o Paço de São Cristóvão com os dinheiros da sua dotação? Se o fizesse, ficaria sem ter com o que ocorrer às outras despesas da sua casa.
O Visconde de Cayru (BA) concordou: “Os reparos dos palácios se devem fazer à custa da nação. Fundo-me na Constituição, que deu ao chefe do Império palácios, e não pardieiros. Ora, palácios se reduzem a pardieiros se não lhes fizerem continuamente os reparos necessários, muito especialmente neste país, onde as umidades tanto estragam os edifícios”.

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Foto: 

 

O senador lembrou que Pedro I era apenas o inquilino de um imóvel que pertencia à nação e disse que, “quando uma casa de aluguel carece de conserto, quem o faz é o dono, e não o inquilino”. Cayru continuou: “Não convém carrear o nosso imperador com o ônus de ser inspetor de obras e fiscal das contas de reparos de seus palácios e quintas [sítios]. A atenção imperial se deve absorver nos negócios do Império”.

Glamour
Antônio Gonçalves Gomide (MG), por sua vez, recorreu ao glamour:
“O lustre e a magnificência do imperante são um objeto essencial nas monarquias e não se pode prescindir dele, tanto para o respeito dos nacionais como para a veneração das nações estrangeiras. Que ideia farão essas nações do nosso Império se acaso formos mesquinhos e não dermos esplendor ao nosso monarca?”.

Ao fim das discussões, o Senado decidiu que o governo destinaria para as obras do Paço de São Cristóvão a importância de 106 contos de réis, dividida em prestações mensais. Pedro I não precisaria gastar nem uma pataca para manter a sua casa de pé.

A preocupação dos senadores com a integridade do palácio se justificava. Antes de a República transformá-lo no Museu Nacional, o Paço de São Cristóvão foi o coração político do Reino de Portugal por quase 15 anos (período em que João VI passou no Rio) e, em seguida, do Império do Brasil por cerca de 70 anos (nos reinados de Pedro I e Pedro II). São Cristóvão significou para o Brasil o que Versalhes foi para a França e o que Buckingham ainda hoje é para o Reino Unido. O palácio foi cenário de acontecimentos decisivos da história do país.

O Paço de São Cristóvão assistiu à reunião do Conselho de Estado presidida pela imperatriz Leopoldina que decidiu pela declaração da Independência, em 1822. Também viu o nascimento de Pedro II, em 1825, a morte de Leopoldina (primeiro luto nacional), em 1826, a abdicação de Pedro I, em 1831, o golpe que antecipou a maioridade de Pedro II e acabou com a Regência, em 1840, e o nascimento da princesa Isabel, em 1846.

O palácio foi construído no ponto mais alto da Quinta da Boa Vista, o que permitia aos monarcas avistar a Floresta da Tijuca, o Morro do Corcovado e a Praia do Caju — daí o nome Boa Vista. Antes de pertencer à monarquia, a residência não tinha nada de especial. Era só mais um entre tantos casarões em estilo colonial que se espalhavam pelo país. Com a chegada de João VI ao Brasil, que deixara Lisboa fugindo de Napoleão, em 1808, inúmeras casas do Rio foram desapropriadas para abrigar os portugueses da comitiva real.

Antes que a sua Quinta da Boa Vista fosse confiscada, o comerciante Elias Antônio Lopes apressou-se em doá-la ao rei. Em agradecimento pelo mimo, João VI concedeu a Lopes títulos de nobreza e uma gorda indenização. O casarão passaria por incontáveis reformas ao longo das décadas. Instalou-se diante dele um imponente portão de alvenaria e ferro fundido. Construiu-se uma torre lateral em estilo mourisco. Fez-se uma escada semicircular para dar entrada à residência pelo segundo pavimento.

Mais tarde, ergueu-se outra torre, na extremidade oposta, agora em estilo neoclássico. Destruiu-se a escada, e a entrada passou a ser pelo primeiro pavimento. Construiu-se o terceiro andar. Reformou-se a torre mourisca, que passou a ser também neoclássica. O objetivo das mudanças era deixar o Paço de São Cristóvão à altura do poder do Império brasileiro.

Em 1847, o Parlamento aprovou um projeto do governo que destinaria 240 contos de réis à conclusão das reformas. As obras pareciam não ter fim. Para o senador Clemente Pereira, Pedro II faria melhor se abandonasse São Cristóvão: “Não se pode deixar de reconhecer que o imperador não tem palácio decente para a sua residência dentro da capital do Império, porque o que atualmente existe não merece essa qualificação, nem pela sua forma de construção, nem pelas suas comodidades.

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Foto: Reprodução

Senador Marquês de Caravelas. O fogo temido por ele realmente ocorreria, mas 191 anos mais tarde, em 2018.

Julgo oportuno que o Senado autorize o governo a proceder aos trabalhos preparatórios para uma nova construção, levantando as plantas das obras e designando o local apropriado e o orçamento da despesa”. A proposta de Pereira foi aprovada, mas o governo não chegou a projetar um novo palácio imperial.

Apagamento do passado
Segundo Regina Dantas, historiadora do Museu Nacional, a situação de São Cristóvão não era tão crítica assim: “Muitos estrangeiros se surpreendiam negativamente com a residência imperial não porque ela estivesse caindo aos pedaços, mas sim porque tinham a expectativa de encontrar um palácio repleto de ostentação, luxo e ouro. Afinal, o Brasil era um império gigantesco, distante e exótico. Em vez disso, o que eles encontravam era a simplicidade típica de Pedro II”.

Após o golpe que derrubou o Império, os republicanos confiscaram o Paço de São Cristóvão. Sua primeira missão no novo regime foi sediar a Assembleia Constituinte. Redigida a Constituição da República, o palácio passou a abrigar o Museu Nacional. “A República fez um apagamento tão forte do passado do Paço de São Cristóvão, arrancando os brasões, desfazendo-se dos móveis e derrubando paredes, que as pessoas que visitavam o Museu Nacional nem se davam conta de que ali já tinha sido um dos lugares mais importantes da história do Brasil”, diz o historiador Bruno Antunes de Cerqueira, presidente do Instituto Cultural Dona Isabel I.