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Os acordes dissonantes da contracultura nos anos de chumbo

em Especial
quarta-feira, 18 de outubro de 2017
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Os acordes dissonantes da contracultura nos anos de chumbo

O significado de contracultura no Brasil ganhou contornos muito distintos daqueles vivenciados na Europa e nos Estados Unidos. Em solo norte-americano, as lutas por direitos civis, os movimentos feministas, a cultura hippie e a resistência à Guerra do Vietnã foram algumas das principais motivações para que diversos grupos de pessoas se dedicassem a um modo de vida alternativo e crítico ao modelo capitalista então predominante

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Na sequência, em fotos da época retratada na pesquisa: Gal Costa, Os Mutantes, Jards Macalé, Gilberto Gil (com Torquato Neto), Novos Baianos, Caetano Veloso, Jorge Mautner, Luiz Melodia, Rogério Duprat, Sérgio Sampaio, Tom Zé e Walter Franco.

Francielly Baliana/Jornal da Unicamp

Esta proposta de contracultura é a que vai se espalhar pelo mundo nos anos 1960, mas o modo como o termo vai ser ressignificado em meio ao período ditatorial brasileiro ainda é objeto de diversos questionamentos e estudos. É o que a socióloga Sheyla Diniz buscou analisar em “Desbundados e Marginais: MPB e Contracultura nos anos de chumbo (1969-1974)”, tese defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. A pesquisadora traçou um panorama mais amplo sobre o recorte histórico em questão, analisando documentos de época, canções, discos e festivais que envolveram músicos.

A pesquisadora identifica uma tensão entre a ideia de cultura engajada, muito presente antes do Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 1968, em que as propostas de esquerda, tanto partidárias quanto de luta armada, se apresentavam de forma veemente na produção musical, e uma ascensão de valores contraculturais, especialmente a partir de 1969, quando as possibilidades do experimentalismo, da liberdade sexual, das drogas e do misticismo vão surgir como alguns dos aspectos estruturantes das canções e performances de parte da produção artística brasileira, especialmente aquela do eixo Rio-São Paulo e de partes do Nordeste.

Sheyla afirma que, antes do AI-5, “a revolução, fosse ela burguesa ou socialista, compunha o horizonte de expectativas de uma grande parcela de artistas. A MPB compartilhava de um ideário nacional popular, que significava buscar na cultura popular uma representação de nação”. Esse ideal romântico, de acordo com Sheyla, estava presente em canções de Chico Buarque, Elis Regina e Nara Leão, dentre vários outros, nas quais “um ‘amanhã que virá’ aparecia recorrentemente, muitas vezes pautado num passado”, ressalta.

A socióloga Sheyla Diniz, autora da pesquisa: “O desbunde não deixou de ser uma postura política, sobretudo no âmbito das chamadas micropolíticas”.Com a intensificação da repressão, a proposta de resistência cultural e de postura política vai se transformando. “O tropicalismo, entre 1967 e 1968, subverte a perspectiva engajada-nacionalista, colocada naqueles termos, e isso gera vários conflitos, principalmente em torno dos festivais”. Sheyla frisa que os tropicalistas trazem “a proposta do aqui e agora, do experimentalismo, tensionando o ideário nacional-popular”. Foram canções como as do álbum Tropicália ou Panis et Circencis, de 1968, por exemplo, lançado por Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé, acompanhados dos poetas Capinan e Torquato Neto, e do maestro Rogério Duprat, que deram a tonalidade do que o tropicalismo estava disposto a realizar.

Esta postura iconoclasta, sobretudo nas apresentações não formalizadas, nos chamados happenings, é uma das razões para o exílio forçado de Gilberto Gil e Caetano Veloso, entre 1969 e 1972, conforme pontua Sheyla. Outro impasse que se apresenta naquele momento é o referente à indústria cultural, “que se consolida, alcança um patamar muito mais sistêmico e integrado. Pode-se dizer que o artista engajado, nos anos 1960, concebia o mercado como um ‘espaço neutro’ para a veiculação de sua arte. O que vai sendo percebido, a partir de 1968, é que não há neutralidade alguma. De repente começam a entender que ou você faz algumas concessões dentro desse novo arranjo sistêmico, ou você está fadado à morte artística”, destaca.

Sheyla ressalta que a tensão criada no campo musical pelos tropicalistas, que assumiram esse mercado cultural em ascensão sem maiores pudores, não passou despercebida à geração de músicos que veio depois, muitos também afeitos à desconstrução de uma forma até então mais ou menos hegemônica de se posicionar cultural e musicalmente. Enfatiza que o léxico musical se expande no sentido de abarcar assuntos que antes não tinham muito espaço na “arte engajada”, e que melhor se intensificarão no fim dos anos 1970, como, por exemplo, a questão homossexual, racial e feminista.

Jorge Ben, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rita Lee, Gal Costa e, sentados, Sérgio Dias e Arnaldo Baptista, em 1968: o núcleo da Tropicália e suas roupas extravagantes.O termo “desbunde” ganhou conotações diversas em um momento em que se acirrava a repressão do regime militar. Sheyla afirma que a palavra surgiu dentro das organizações de luta armada, “para acusar, tachar os companheiros que recuavam. Para a esquerda armada, desbundado era a pior coisa que se podia dizer sobre alguém, fazia referência a posicionamentos julgados individuais e egoístas”.

O termo passou a circular no meio artístico, e foram chamados de desbundados aqueles que, para alguns, seriam despolitizados, alienados. “O desbunde, muito vinculado ao ideário hippie, era uma gíria ambivalente. É preciso situá-la em meio aos conflitos político-ideológicas da época. O desbunde não deixou de ser uma postura política, sobretudo no âmbito das chamadas micropolíticas”, completa.

Ainda que parte da imprensa e dos intelectuais herdeiros do nacional-popular tenha caracterizado aquele contexto como expressão de um “vazio cultural”, são alguns dos artistas considerados desbundados que, para a pesquisadora, vão abrir caminho para que a marginalidade temática e formal apareça nas canções. A pesquisa de Sheyla contesta justamente aquele estigma, o do “vazio”, referente ao período que estuda, apresentando o quanto álbuns como FA-TAL, de Gal Costa, lançado em 1971, Acabou chorare, dos Novos Baianos, de 1972, ou o álbum nominal de Jards Macalé, também de 1972, por exemplo, são distintos, mas carregam elementos de um mesmo condicionante histórico, que o crítico literário britânico Raymond Willians chamou de estrutura de sentimento. “Há um teor depressivo em parte dessa produção contracultural, ao mesmo tempo há uma enorme criatividade, há um aspecto lúdico”, explica.

Capa do icônico Tropicália ou Panis et Circenses.Ao comentar que na canção popular brasileira, a partir do fim dos anos 1960, a marginalidade tem mais a ver com linguagem, experimentação, temáticas e espaço-temporalidades, Sheyla não exime os artistas da lógica da indústria cultural, mas os compreende vinculados a esse cenário. O fato de a cultura não ser etérea, mas substancialmente material, não exclui atentar para a mobilidade e fluidez existente em algumas dessas criações e ações dos artistas. Essa contingência, para a pesquisadora, também caracteriza a produção cultural do período, especialmente por trazer à tona o que músicos como Luiz Melodia e o próprio Jards Macalé, em consonância com artistas como Waly Salomão e Hélio Oiticica, produziram a partir de relações mais diretas e simétricas com populações marginalizadas.

Para a socióloga, estes artistas – considerados desbundados e marginais na MPB – recusavam explicações e roteiros totalizantes sobre o mundo, tanto à direita quanto à esquerda, o que influi e ao mesmo tempo justifica a matéria cantada e os próprios modos de vida dos artistas, ancorados em experiências como as de “expansão da consciência, experimentalismo estético-formal, comunitarismo, liberação sexual e filosofias orientais, que vão se disseminar por vários lugares do Brasil, especialmente entre os jovens”, aponta.

É nesse sentido que a autora da tese defende a hipótese de que a contracultura, no Brasil, pode ser concebida como “uma estrutura de sentimento, que difere da ideia de que recebemos uma proposta empreendida nos Estados Unidos e assumimos isso de forma acrítica. O contexto aqui era outro, e o que vai ser produzido também é próprio. Mas isso não implica, de modo algum, negar todo um insumo de ideias e referências internacionais”. O solo histórico da contracultura made in Brazil naquele período, para Sheyla, está intimamente atrelado ao próprio jogo político, no qual a cultura nunca está isenta, mas articula maneiras particulares de resistências.

“As interpretações construídas sobre aquele momento, principalmente a de que havia um esvaziamento do político, precisam ser revistas”, conclui, sem deixar de refletir no quanto esse fluxo intermitente na produção cultural do início dos anos 1970 parece ter contribuído para a abertura em anos de chumbo, ainda que ela tivesse sido lenta, gradual e, de certa forma, insegura, como os tempos atuais têm sido capazes de assim fazer pensar.