Já em uso no país, audiências de custódia podem virar lei
Senado avalia projeto que dá prazo de 24 horas para que toda pessoa presa em flagrante seja levada à presença de um juiz, que decidirá se a prisão é necessária. Medida, incentivada pelo Conselho Nacional de Justiça, visa garantir os direitos do preso e evitar tortura ou maus-tratos
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Dos mais de 700 mil presos que ocupam o sistema carcerário brasileiro, cerca de 230 mil estão em prisão provisória, ou seja, ainda não foram julgados ou sentenciados. Os dados do Novo Diagnóstico de Pessoas Presas no Brasil, levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 2014, refletem uma realidade que uma proposta em tramitação no Senado pretende mudar de forma definitiva.
Apresentado em 2011 por Antonio Carlos Valadares (PSB-SE), o Projeto de Lei do Senado 554/2011 estabelece o prazo máximo de 24 horas para um preso em flagrante ser apresentado ao juiz. O texto, que faz parte do grupo de propostas prioritárias definido pelos líderes partidários no início do ano e está pronto para votação em Plenário, legaliza o instituto da audiência de custódia, determinando a apresentação física do preso ao juiz e também a comunicação do ato da prisão, de imediato, pelo delegado ao Ministério Público, à Defensoria Pública — caso não tenha sido constituído advogado —, à família ou a pessoa indicada pelo preso.
O projeto teve o cuidado de explicitar que as informações obtidas na audiência de custódia — feitas logo após a prisão e, por isso, antes do tempo hábil para que o acusado monte sua defesa — serão registradas em autos apartados e não poderão servir de meio de prova contra ele. Deverão tratar, exclusivamente, da legalidade e da necessidade de prisão, da prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos e dos direitos assegurados ao preso e ao acusado.
Enquanto a proposta tramitava no Senado, onde foi analisada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e na Comissão de Direitos Humanos (CDH), o CNJ se antecipou e lançou, em fevereiro de 2015, o projeto Audiência de Custódia, prevendo por ato administrativo a prática no país. Em seguida, editou a Resolução 213/2015, regulamentando a prática. O conselho se baseou em normas já previstas em pactos e tratados internacionais assinados pelo Brasil — que têm força de lei —, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José. E por meio de termos de adesão, conseguiu que os 26 estados da Federação e o Distrito Federal adotassem a medida.
Para Valadares, autor do projeto, a audiência de custódia trata um grave problema social do país: a superlotação das prisões:
— Essa medida assegura uma economia da ordem de mais de R$ 4 bilhões. Cada preso custa ao Estado R$ 3 mil por mês. Despesa que poderia ser atenuada caso a Justiça pudesse identificar individualmente se aquele preso merece estar no lugar onde está ou se deveria ser liberado para responder o processo em liberdade. A proposta contribui para a correção de injustiças havidas nos cárceres e também poderia corrigir essa situação de dispêndio desnecessário.
O senador Humberto Costa (PT-PE), que foi relator do projeto na CCJ, ressalta a importância das audiências para que o país possa ter uma política de promoção da Justiça penitenciária, incentivando o desencarceramento e a melhoria do atendimento aos condenados que cumprem pena.
— Infelizmente, as prisões temporárias e preventivas às vezes se arrastam por um longo tempo e muitos desses casos poderiam ser resolvidos sem necessidade de prisão. Com as audiências, o juiz pode analisar com tranquilidade se é possível que o preso responda ao processo em liberdade ou não, e, em boa parte dos casos, a possibilidade de responder em liberdade é grande. Isso beneficia o enfrentamento da superlotação carcerária — argumenta.
A chance de se reduzir o número de prisões desnecessárias é reforçada pelo consultor legislativo do Senado na área de direito penal, processual penal e penitenciário Tiago Ivo Odon. Ele explica que o sistema judiciário no Brasil possui uma cultura de “carceirização”, com a prisão provisória sendo uma medida muito aplicada no país — 32% dos presos são provisórios, número considerado alto. Na Europa, o índice não chega a 20%. Odon defende que é preciso haver esforço coletivo para limitar essa tendência e as audiências surgem como instituto novo no combate da prática.
— O Supremo Tribunal Federal tem feito nos últimos anos mutirões carcerários e percebeu que há muitas pessoas presas irregularmente. O STF pegou, inclusive, casos de pessoas que já tinham cumprido a pena e ainda estavam presas. As audiências de custódia têm permitido resolver o problema na ponta. Mas a medida ainda não está prevista em lei, daí a razão deste projeto do Senado, para torná-la um instituto legal — acrescenta.
Designado relator do PLS em Plenário, o senador João Capiberibe (PSB-AP) destaca um outro ponto fundamental do projeto: a garantia de que o cidadão preso não sofra violência ou tortura.
— Em uma sociedade como a nossa, cujo Estado cultiva a violência, em que temos uma longa tradição de tortura pelas forças de segurança, é fundamental que aprovemos esse projeto, que já é uma prática. Só que é preciso ter uma lei que garanta esse direito a todos os cidadãos que por acaso sejam detidos pelas forças de segurança. É uma garantia de vida, inclusive — argumenta.
O autor de um relatório especial contra a tortura apresentado ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, Juan Méndez, classificou as audiências de custódia como “uma das mais importantes iniciativas em políticas públicas para combater problemas em prisões arbitrárias e tortura”. O documento apresentado por Méndez foi resultado de visita oficial de 12 dias realizada ao país em agosto de 2015 a convite do governo brasileiro.
Juízes criticam falta de estrutura para aplicação da medida
A aplicação das audiências de custódia, entretanto, não é consenso entre os representantes das forças de segurança do país. Há questionamentos sobre a aplicabilidade real da proposta, uma vez que as garantias do preso em flagrante — preservação da sua integridade física e avaliação da sua prisão — já seriam previstas em lei. Há também críticas de que a medida sobrecarrega um sistema já lento e pesado, ao se criar uma nova prática no processo judicial sem ampliar, na mesma medida, os recursos humanos e materiais para atendê-la.
Para o presidente da Associação Nacional de Magistrados Estaduais (Anamages), desembargador Magid Lauar, as audiências de custódia estão fundamentadas principalmente em um tratado internacional (San José) de 1969, período em que havia ditaduras em diversos países da América Latina e em que era necessário garantir a segurança e a vida de presos, principalmente os políticos. Hoje, quase 50 anos depois, esse cuidado com a integridade física do preso já existe na própria legislação brasileira — o artigo 306 do Código de Processo Penal exige, por exemplo, que qualquer prisão seja notificada ao juiz, ao Ministério Público, ao advogado do preso ou à Defensoria Pública e à família.
— Se a prisão for ilegal, a manifestação é imediata. Seja da defesa, seja da autoridade policial — diz Láuar, que ressalta a garantia legal do preso de ter direito a processo célere, caso contrário o crime do qual é acusado prescreverá ou ele poderá ser solto por decurso de prazo.
A Anamages chegou a entrar com ação direta de inconstitucionalidade contra a resolução do CNJ, que foi negada pelo Supremo Tribunal Federal sob a justificativa de falta de legitimidade da entidade (composta de juízes estaduais) para apresentar a ação. O STF também negou ação da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol) que questionava a legalidade das audiências.
A Anamages, porém, mantém as críticas. O presidente adverte que o sistema judiciário do país paga o preço por não comportar a implementação de uma nova medida processual.
Lauar cita como exemplo a rotina dos juízes de São Paulo, que precisam fazer 15 audiências por dia sobre processos de réus presos e passaram a acumular mais cerca de 20 audiências de custódia. Em Minas Gerais, estado onde atua, Lauar diz haver deficit de 200 juízes, sendo que algumas comarcas estão há 10 anos sem a presença de um juiz.
Além disso, há cidades do interior do país que têm apenas um delegado, poucos policiais e uma única viatura. Quando há prisão em flagrante, é preciso mobilizar praticamente toda a equipe de segurança para fazer o deslocamento do preso até o juiz.
— Nós não nos recusamos a fazer as audiências de custódia. Mas elas exigem um mínimo de estrutura — cobra.
O presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia Civil do Distrito Federal, Benito Tiezze, reforça a preocupação com a falta de estrutura para atender as audiências de custódia. Ele explica que, no Distrito Federal, foram alocados mais de 100 policiais, retirados de suas atividades de rotina, para atuar na apresentação dos presos (Ag. Senado/Especial Cidadania).