Integrado, ma non troppo
A trajetória artística do músico e compositor Tom Zé se estabeleceu sob uma relação tensa entre o projeto estético experimental do artista e a indústria fonográfica brasileira
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Silvio Anunciação/Jornal da Unicamp
o mesmo tempo em que rompeu programaticamente com padrões de linguagem e conduta estabelecidos pelo mercado fonográfico do país, Tom Zé foi, contraditoriamente, integrado ao mesmo. Essas considerações fazem parte da dissertação “Vanguarda, experimentalismo e mercado na trajetória artística de Tom Zé”, defendida recentemente pelo pesquisador Guilherme Araújo Freire no Instituto de Artes (IA) da Unicamp.
“Trata-se de um estudo que problematizou as relações entre a carreira artística de Tom Zé e a indústria cultural. O projeto estético do Tom Zé é programático, ele intencionalmente transgride certos padrões de beleza musical da MPB [Música Popular Brasileira], consolidados pelo mercado na indústria fonográfica. Em sua obra satiriza, inclusive, os padrões estéticos formados. Esse foi um dos fatores que certamente contribuiu para que o músico tenha sido logrado ao ostracismo entre 1973 e 1990. Por outro lado, foi também devido às práticas experimentais que Tom Zé acabou se consagrando no mercado internacional, algo que contribuiu decisivamente para que ele voltasse a ser valorizado no mercado nacional”, explica o estudioso.
O mestrado de Guilherme Araújo Freire foi conduzido junto ao Programa de Pós-Graduação em Música do IA. A pesquisa foi orientada pelo professor José Roberto Zan, que atua no Departamento de Música da Unidade. Guilherme Freire, que é graduado em Música pela Unicamp, obteve financiamento, na forma de bolsa de pesquisa, da Fapesp. Ele informa que o seu estudo abordou as diferentes fases da carreira de Tom Zé, situadas entre o lançamento do seu primeiro LP (Grande Liquidação – Rozenblit), em 1968, e o final da década de 1990, quando o músico é consagrado no mercado internacional. Esta consagração aconteceu, conforme Guilherme Freire, após o lançamento, em 1998, nos Estados Unidos, do disco Com Defeito de Fabricação (LuakaBop/WEA).
“Na década de 1980, Tom Zé ainda estava atuando nas margens do mercado. Contudo ele acabou sendo ‘descoberto’ pelo David Byrne, produtor escocês radicado nos Estados Unidos, fundador e ex-integrante do grupo Talking Heads. Byrne apoiou Tom Zé, lançando pela sua gravadora uma coletânea com as músicas dele no mercado internacional. Este disco, Brazil Classics, Vol. 4: The Best of Tom Zé – Massive Hits, fez considerável sucesso e acabou conferindo ao artista visibilidade no mercado internacional. Isso, por sua vez, fez com que ele voltasse a ser valorizado também no mercado nacional.”
O compositor baiano Tom Zé: de maldito à consagração depois de reconhecimento internacional. |
Naquele período a coletânea vendeu cerca de 40 mil cópias no exterior e apenas 1.700 no Brasil, lembra o pesquisador do IA. Guilherme Freire acrescenta que o disco Com Defeito de Fabricação, lançado oito anos depois, foi listado entre os dez melhores por dois críticos de jazz e música pop do jornal The New York Times. Obteve, além disso, classificação quatro estrelas da revista Rolling Stone e críticas favoráveis das publicações Spin, Village Voice e Billboard, fatos que indicam o grau de consagração que Tom Zé conquistou no mercado internacional. “Talvez houvesse uma demanda maior pela imperfeição, por ruídos, por procedimentos vanguardistas nos Estados Unidos e na Europa do que no Brasil”, pontua o pesquisador.
Em seu entendimento, muitas matérias publicadas em periódicos naquele período atribuem a ajuda de David Byrne como a principal razão do sucesso de Tom Zé no mercado internacional. “No meu trabalho, eu aponto outra maneira de interpretar este fenômeno. É preciso entender, por exemplo, as novas configurações da indústria fonográfica no final da década de 1980 e início de 1990 oriundas do impacto dos processos de globalização”, pondera.
Ainda segundo Guilherme Freire, houve, como contribuição à consagração de Tom Zé no mercado internacional, o surgimento do segmento da World Music no mercado, como forma de valorização da diversidade. O pesquisador do IA sustenta que, caso não houvesse a presença de discursos de valorização da diversidade cultural ou mesmo uma tendência de busca e apropriação de símbolos locais por selos e gravadoras atuantes no segmento de World Music, David Byrne provavelmente não teria produzido discos de músicas regionais estrangeiras para o selo LuakaBop.
Capas de Grande Liquidação (1968); Todos os Olhos (1973); Estudando o Samba (1976); e Com Defeito de Fabricação (2988). Obras analisadas para fundamentar a dissertação. |
Tal tendência, exemplifica o estudioso, contribuiu para que o fundador do Talking Heads lançasse coletâneas com músicas de Tom Zé ou de compositores cubanos, dirigisse documentários ou mesmo buscasse gêneros e artistas em diversos continentes para lançar no mercado internacional. “E Tom Zé se beneficiou dessa mudança de contexto. Pelo fato de haver discursos de valorização da diversidade, o seu projeto estético experimental, considerado, na década de 1970, hermético e equivocado, se tornou ‘singular’, em um mercado globalizado, em que a universalização das técnicas e a consagração mundial de fórmulas padronizadas atuavam na direção de certa homogeneização dos produtos”, acrescenta.
Ainda de acordo com Guilherme Freire, mesmo atuando no mercado fonográfico global, caracterizado pelo monopólio de poucas gravadoras e grupos empresariais, Tom Zé se consagra, contraditoriamente, através de sua criatividade e singularidade musical. “Concebido em contraposição às tendências homogeneizantes do mercado internacional e, ao mesmo tempo, realizando uma crítica aberta ao capitalismo global, o disco Com Defeito de Fabricação condensa as ideias artísticas de Tom Zé e consolida o seu projeto estético, desenvolvido e amadurecido no seu período de marginalidade”, fundamenta.
Para entender essa postura de choque de Tom Zé com a indústria fonográfica é relevante compreender a formação universitária do artista, salienta Guilherme Freire. Realizada na Universidade Federal da Bahia, entre 1962 e 1967, a formação musical acadêmica de Tom Zé teve uma característica peculiar por conta do quadro de professores daquele período.
“Professores como Lina Bo Bardi, Pierre Verger, Walter Smetak, Yanka Rudzka, Agostinho da Silva, entre outros, tinham formação consistente nas vanguardas europeias e passavam isso nos cursos. E o Tom Zé se formou neste ambiente universitário efervescente, frequentando cursos extracurriculares de harmonia, contraponto, estruturação, composição e aprendendo técnicas do dodecafonismo, do serialismo, além de ter contato com obras de John Cage, Arnold Schoenberg e Pierre Boulez, entre outros. A partir desta formação, Tom Zé parece ter incorporado certa lógica de ruptura, ao empregar, por exemplo, procedimentos musicais vanguardistas do pós-guerra, comprometidos com a abolição do sistema tonal, a construção de novas sonoridades e um novo discurso musical.”
Guilherme Araújo Freire, autor da pesquisa. |
Capas de “Grande Liquidação” (1968), “Todos os Olhos” (1973), “Estudando o Samba” (1976) e “Com Defeito de Fabricação” (1998), obras analisadas para fundamentar a dissertaçãoEm seu estudo, o pesquisador do IA analisou quatro discos da carreira do músico: Grande Liquidação, de 1968 (Rozenblit); Todos os Olhos, 1973 (Continental); Estudando o Samba, 1976 (Continental) e Com Defeito de Fabricação, de 1998 (LuakaBop/WEA). Além da análise dos discos, Guilherme Freire realizou uma busca de material primário, coletando e analisando cerca de 100 matérias de periódicos publicadas sobre Tom Zé.
“O objetivo foi situar os discursos e quatro discos de Tom Zé nos respectivos contextos históricos e configurações da indústria fonográfica, buscando compreender melhor as especificidades de sua inserção no mercado de música popular, suas estratégias de atuação, o sentido de suas opções estéticas, bem como investigar as permanências e transformações ocorridas no seu projeto estético ao longo de sua trajetória.”