Há 100 anos, greve geral parou São Paulo
Há cem anos, São Paulo vivia dias de completa anormalidade. Em certas horas, parecia uma cidade fantasma: ruas desertas, comércio de portas abaixadas, indústrias com o maquinário desligado, bondes parados, escolas sem aula. Em outras horas, tornava-se palco de espetáculos de violência.
Operários protestam em São Paulo em 1917: greve geral plantou semente das primeiras leis trabalhistas. |
Em julho de 1917, 50 mil operários (10% da população paulistana) paralisaram praticamente todas as fábricas de São Paulo — de tecidos, chapéus, sapatos, móveis, fósforos, parafusos, cerveja, farinha —, exigindo o fim das condições desumanas de trabalho. Foi a primeira grande greve do Brasil. A cidade fantasma dava lugar à violência e ao sangue quando os grevistas atacavam fábricas, armazéns e bondes, e a polícia os reprimia à bala. A greve geral durou uma semana, deixando 200 mortos nos dois lados.
Documentos de 1917 guardados no Arquivo do Senado e no Arquivo da Câmara mostram que quase não existiam direitos trabalhistas. Cada fábrica fazia suas regras. Os empregados trabalhavam no mínimo 12 horas por dia.
“Obrigar um homem a trabalhar mais de oito horas por dia é uma exigência superior às forças humanas”, argumentou o senador Raimundo de Miranda (AL). O senador Alfredo Ellis (SP) respondeu, mostrando que a redução da carga de trabalho não era um direito tão óbvio assim: “Nós, do Poder Legislativo, não podemos decretar horas de trabalho”.
Não havia férias, aposentadoria, adicional noturno nem descanso no fim de semana. Os salários eram baixíssimos. Mulheres e crianças desempenhavam as mesmas tarefas dos homens, mas recebiam ainda menos. As operárias eram vítimas frequentes de assédio sexual. Não existia carteira de trabalho. Os patrões não respondiam pelos acidentes nas fábricas. As greves eram ilegais. Os empregados que participavam das paralisações eram demitidos.
O governo parecia não se importar com a mentalidade escravagista que, três décadas após a abolição, persistia no país. “O proletariado nacional não tem recebido a menor lei que o ampare”, acusou o deputado Maurício de Lacerda (RJ) às vésperas da greve geral. Vários projetos pejavam o seio do Congresso, mas todos eles, preocupados com o efeito eleitoral, deixaram o problema sem solução, pois entregaram as soluções reclamadas pelos trabalhadores aos regulamentos do Poder Executivo, que só podia representar os patrões.
O Brasil assistia a greves desde a segunda metade do século 19, mas elas não se comparavam à que viria em 1917, pois mobilizavam grupos restritos e não tinham maior repercussão. A fagulha da greve geral em São Paulo foi a paralisação dos operários do Cotonifício Crespi, uma fábrica de tecidos localizada na Mooca. Ela desencadeou um efeito dominó. Homens, mulheres e crianças de várias outras indústrias seguiram o exemplo, dando ao movimento paredista um alcance inédito.
Os trabalhadores eram insuflados pelos colegas italianos e espanhóis adeptos do anarquismo (doutrina que considera o governo opressor e prega o fim do Estado). “Os anarquistas, dirigindo os elementos operários, impediram a vida da cidade, atacaram a propriedade e mataram. A polícia não poderia tratá-los a bombons e chocolate”, disse o deputado Álvaro de Carvalho (SP). Apoiador da greve, o deputado Maurício de Lacerda retorquiu: “Os operários, sempre que reclamam pacificamente, são esquecidos. Sempre que suas reclamações tomam uma forma ofensiva, são metralhados”.
Em 1917, a indústria brasileira engatinhava, mas já lucrava muito. A eclosão da 1ª Guerra (1914-1918) comprometera a produção da Europa, o que deu às manufaturas do Brasil um espaço privilegiado no mercado mundial. Para dar conta da demanda, os empregados passaram a trabalhar mais, mas sem ganhar nem um centavo extra. Os grevistas se agruparam no Comitê de Defesa Proletária e unificaram a pauta de reivindicações, mas não sabiam exatamente com quem negociar. Inexistia uma entidade que representasse a indústria como um todo.
O presidente Wenceslau Braz, o governador Altino Arantes e o prefeito Washington Luiz estavam mais preocupados com a repressão das passeatas, dos comícios e das depredações do que com a negociação. O acordo acabou sendo costurado pelos diretores dos grandes jornais de São Paulo. Organizados na Comissão da Imprensa, eles levavam as propostas dos operários ao poder público e aos industriais. O fim da greve geral foi assinado na redação do jornal O Estado de S. Paulo.
Os empresários prometeram elevar os salários em 20%, não demitir os grevistas, respeitar o direito de associação dos empregados e “melhorar as condições morais, materiais e econômicas do operariado”. O poder público anunciou que libertaria os grevistas presos. A vitória, entretanto, acabou sendo temporária. “Meses depois, os empresários começaram a voltar atrás nos compromissos”, diz o historiador Luigi Biondi, da Unifesp. De qualquer forma, a greve de 1917 representou uma conquista histórica: foi a primeira vez que o poder público no Brasil negociou com os trabalhadores. Mesmo com todo o sangue derramado, o governo e o Congresso não se mexeram de imediato para criar leis trabalhistas. Em vez disso, dedicaram-se a questões secundárias.
O senador Raimundo de Miranda acreditava que o importante era combater a inflação galopante, que, na visão dele, era a maior fonte de insatisfação dos trabalhadores. “Esta carestia de vida resulta de uma vergonhosa especulação comercial. Ainda ontem, tive ocasião de ver que se vendia por 4 mil réis o quilo da banha, gênero de primeira necessidade que há poucos dias custava 2,4 mil réis”, disse ao apresentar um projeto que obrigava os industriais a elevar o salário dos empregados toda vez que seus produtos ficassem mais caros.
Para o senador Adolfo Gordo (SP), a solução seria expulsar do país os estrangeiros que instigassem as greves. Ele era o autor de uma lei que previa a deportação, mas fora julgada inconstitucional pelo STF. “Decidir que o Brasil não tem a faculdade de expulsar estrangeiros é tornar o país um asilo de anarquistas, bandidos, cafetões, vagabundos e outros elementos detestáveis”.
Os direitos trabalhistas teriam que esperar alguns anos. Em 1923, aprovou-se uma lei que impedia as demissões arbitrárias, dando ao empregado alguma estabilidade no emprego. Em 1927, veio uma lei que proibiu o trabalho das crianças e reduziu a exploração dos adolescentes. O juiz Guilherme Guimarães Feliciano, presidente da Anamatra, lembra que, equivocadamente, muitos creem que os direitos trabalhistas foram obra de Getúlio Vargas, criador da CLT. “É certo que a CLT, de 1943, trouxe novidades, mas ela foi essencialmente uma compilação das leis trabalhistas das décadas de 1920 e 1930, que nasceram graças à semente plantada pela greve geral de 1917”.
Fonte: Ricardo Westin/Agência Senado