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Febre das patinetes desafia cidades brasileiras

em Especial
quarta-feira, 03 de julho de 2019
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Febre das patinetes desafia cidades brasileiras

Os problemas criados nos últimos meses em várias cidades brasileiras pelo uso inadequado de patinetes elétricas desfez a ilusão de que empresas e consumidores pudessem resolver sozinhos, e num passe de mágica, certos embaraços à mobilidade urbana

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Regras do Contran já limitam velocidade das patinetes em calçadas. Foto: Ana Volpe/Agência Senado

Nelson Oliveira e Aline Guedes/Ag. Senado/Especial Cidadania

imagem 03 temasproarioEm duas audiências públicas promovidas sobre o tema pelo Senado, as opiniões convergiram para a necessidade de uma regulação discutida e planejada com antecedência pelo poder público como melhor caminho para que as comunidades reinventem seu modelo de trânsito, sem que tenham de passar pelo caos ou cair no proibicionismo.

No limite, o que deve ser preservado é o direito à integridade física dos que circulam pelas cidades, mas parlamentares e especialistas recomendam equilíbrio para que não se joguem fora alternativas promissoras ao meio ambiente e à fluidez do tráfego.

De janeiro a maio, num crescendo, a combinação de novidades tecnológicas com modelos de negócio arrojados surpreendeu a população, provocando alvoroço. A empolgação inicial, entretanto, vem sendo arrefecida por sustos, quedas e atropelamentos nas ruas de São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro e uma dezena de outras cidades nas quais as patinetes estão presentes, mostrando que também as autoridades responsáveis pelo planejamento urbano se surpreenderam.

Pelo menos parte dos danos provocados por esse afluxo repentino poderia ter sido evitada, caso tivesse sido cumprido à risca o que recomenda desde 2013 a Resolução 465 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) para esses veículos: circulação em áreas de pedestres a 6 quilômetros por hora (km/h) e a 20 km/h em ciclovias e ciclofaixas.

Repetindo os sintomas observados na Europa e nos Estados Unidos, as patinetes irromperam na forma de surto febril induzido por startups de uma nova frente de negócios: a micromobilidade. Ao mesmo tempo, se apresentaram como remédio eficaz contra os engarrafamentos, a poluição do ar e a falta de transporte público de boa qualidade.

A ambiguidade de atributos provocou, no Brasil, a mesma perplexidade estampada na imprensa de outros países, cujos habitantes demandam de forma justa a melhoria substancial do padrão de urbanismo. Por essa razão, administrações locais, nacionais e casas legislativas buscam entender e organizar o fenômeno dos veículos elétricos individuais, nos quais se incluem, além das patinetes, as bicicletas, alguns tipos de skates e segways.

A prefeitura de São Paulo foi a primeira a reagir por aqui. Comprou uma briga de grandes proporções com empresas do setor e com os usuários.

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São Paulo foi a primeira cidade do país a regulamentar as patinetes. Foto: Marcos de Sousa/Mobilize Brasil

Por meio de uma norma de caráter emergencial e provisório, o Decreto 58.750, baixado em 13 de maio, estabeleceu que as locadoras teriam de se credenciar junto à Administração e cuidar da segurança dos equipamentos e dos condutores, obrigando-os a usar capacetes e trafegar somente em vias, ciclovias e ciclofaixas — e na velocidade adequada (no máximo 20 km/h). Nas calçadas, a circulação foi terminantemente proibida. Quanto às multas, foram fixadas entre R$ 100 e R$ 20 mil.

imagem 06 temasproarioJá nas primeiras ações da fiscalização, mais de 550 veículos acabaram recolhidos, o que levou a empresa líder do negócio a acionar judicialmente o poder público, obtendo a liberação do capacete, mas não das calçadas e do registro. Ao Senado, os empresários trouxeram uma pesquisa na qual os locatários afirmam preferir que o uso de protetores de cabeça não seja obrigatório.

A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) também decidiu agir: votou nada menos que dois projetos de lei na semana passada, não obstante as incertezas sobre a questão e sobre competência de um poder estadual para legislar nessa matéria. Com efeito, um dos projetos terminou por ser mal recebido pelo público das patinetes, levando o autor a desistir da ideia. “Diante da rejeição da sociedade e entendendo sempre que o povo é soberano, pedi ao governador do estado o veto total ao projeto”, publicou numa rede social o deputado estadual Alexandre Knoploch (PSL).

No Distrito Federal, o governador Ibaneis Rocha (MDB) teria a intenção de enviar um projeto de lei sobre o assunto à Câmara Legislativa, onde já tramitam duas proposições apresentadas pelo deputado Eduardo Pedrosa (PTC). Uma delas chega a estipular em cinco o máximo de equipamentos deixados em locais de passagem de pedestres ou veículos.

Por enquanto, o que está valendo de fato no DF, além das exigências do Contran, é um conjunto de regras baixadas pelo Departamento de Trânsito (Detran): utilização compulsória de capacete, joelheiras e cotoveleiras; cuidado com pedestres e proibição para utilização de patinetes elétricas por crianças sem a supervisão de um adulto.

Diante do quadro de acidentes — apenas na cidade de São Paulo foram registrados 125 atropelamentos entre janeiro e maio, de acordo com o Procon — e das incongruências das normas municipais, o tema ganhou premência no Senado.

Regras hoje na alçada local poderão, portanto, ganhar abrangência nacional em algum momento. Apresentado pela senadora Rose de Freitas (Podemos-ES), o PL 2.971/2019 regulamenta os serviços de compartilhamento de bicicletas, bicicletas elétricas e veículos de mobilidade individual.

O PL 3.112/2019, apresentado pelo senador Styvenson Valentim (Podemos-RN), limita a 6 km/h a movimentação dos veículos individuais autopropelidos em áreas de circulação de pedestres e a no máximo 20 km/h em ciclovias e ciclofaixas, exatamente como determina o Contran. E cada veículo só poderá levar uma pessoa por viagem.

— Temos um trânsito já violento, onde não se respeitam ciclistas, por exemplo, e agora mais um objeto que merece atenção. Não sou contra seu uso, mas defendo sua regulamentação — pondera o parlamentar.

Raphael Dornelles, um dos coordenadores da ONG Rodas da Paz, do Distrito Federal, acredita que a regulamentação do uso com normas muito estritas poderá desestimular as pessoas a fazer uso dos patinetes:

— Antes de tudo, é preciso educação. Mensagens que orientem, por exemplo, sobre o respeito aos pedestres e aos ciclistas e não trafegar na contramão. Não é proibindo nem punindo essas pessoas que vamos ter mudanças.

O consultor do Senado Rodrigo Novaes também defende o aspecto educativo. E chama a atenção para a necessidade de inclusão das novas formas de locomoção na Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), instituída pela Lei 12.587, de 2012, e no Código de Trânsito Brasileiro (CTB), além da integração das ciclovias com outros meios de transporte urbano, como ônibus e metrô.

A Subcomissão Temporária de Mobilidade Urbana do Senado está atenta ao assunto. Por meio de seu presidente, senador Acir Gurgacz (PDT-RO), apresentou anteprojeto para regulamentar de maneira flexível o uso de patinetes em deslocamentos urbanos e integrar à legislação os serviços de compartilhamento de bicicletas convencionais e elétricas.

— Há uma grande discussão sobre o assunto e estamos trabalhando por uma regulamentação mínima para que, depois, cada município faça a adequação a sua realidade — explica o parlamentar.

O regramento do uso de veículos elétricos individuais em nível nacional tem a simpatia de José Luiz Nakama, assessor da Secretaria Municipal de Mobilidade e Transporte do município de São Paulo. Em debate sobre o anteprojeto na subcomissão de Mobilidade no dia 10 de junho, ele afirmou que normas municipais isoladas podem trazer insegurança.

Nakama também cobrou uma definição mais clara do que é patinete, para evitar confusão com outros veículos, e disse que o projeto deveria abranger uma “vasta gama” de meios de transporte com ou sem motor.

A gerente da Escola Pública de Trânsito (EPT), Rosana Soares Néspoli, frisou em audiência anterior (em 23 de maio) que a disseminação do uso dos patinetes tem agradado a população. Mas entende que a utilização de calçadas é temerária. Ela aconselhou a realização de estudos para definir regras de espaço de uso e limites de velocidade. Ao defender cautela na elaboração das restrições, a especialista argumentou que a introdução de um novo modal não pode ser feita à base de “ensaio e erro”.

— É preciso uma regra muito clara. Se o serviço oferece o mínimo de risco de saúde, é porque ainda não está amadurecido para funcionar — alertou.

Na mesma audiência pública, o representante da União de Ciclistas do Brasil, Yuriê Baptista César, falou da necessidade de adaptação da infraestrutura das cidades para esses novos modais.

— Nós estamos colocando um monte de coisas na calçada, mas talvez devêssemos estar colocando na rua. Por que 70% das pessoas não se deslocam de automóvel e 70% do espaço viário é ocupado pelos automóveis? Por que não estamos discutindo aqui a possibilidade de tirar o espaço dos carros nas cidades e transformar em espaço para que as pessoas caminhem, pedalem, andem de patinete?
— indagou.