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Estigmas e tabus: por que o câncer de ontem não é o mesmo de hoje

em Especial
quinta-feira, 08 de novembro de 2018
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Estigmas e tabus: por que o câncer de ontem não é o mesmo de hoje

O câncer aparece nos manuais de medicina desde a Antiguidade, mas o entendimento dele como um problema de saúde pública é muito mais recente

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Foto: 

Imagem: Montagem com fotos do arquivo da pesquisa

Silvana Salles/Jornal da USP

Uma pesquisa de mestrado da FMUSP procurou desnaturalizar a doença enquanto problema para mostrar que o câncer possui dimensões que vão além do biológico. Com isso, produziu uma narrativa que conta a história social do câncer em São Paulo do final do século XIX até meados do século XX.

O historiador Elder Al Kondari Messora, que desenvolveu a pesquisa, levantou uma grande quantidade de documentos que nunca haviam sido analisados: pôsteres, notas de jornais e teses doutorais de médicos do início do século passado. Messora defendeu o trabalho em março e recentemente foi contemplado com o prêmio da Sociedade Brasileira de História da Ciência de melhor dissertação.

Na metáfora do historiador, o câncer é uma grande quimera (monstro mitológico híbrido) que se metamorfoseia o tempo inteiro, renovando-se ciclicamente na forma de um “novo mal” ao longo da história. A nomenclatura é da Grécia Antiga, por volta do ano 400 A.C., e costuma ser atribuída a Hipócrates. Naquele período, o termo significava um inchaço numa parte do corpo que tinha determinadas características: a parte superior razoavelmente enrijecida, com veias grossas que alimentavam o tumor.

Estigmas 4 temporario“Não tem absolutamente nada a ver com o que é o câncer hoje, que é a multiplicação celular descontrolada, com possibilidade de metástase”, alerta Messora. “Apesar do nome perdurar, a doença é outra coisa. O seu diagnóstico, o seu tratamento, o seu sofrimento, tudo é distinto, apesar do nome persistir”, completa o pesquisador.

Segundo o coordenador do Museu Histórico da FMUSP, professor André Mota, existe uma certa disputa na comunidade médica e na sociedade com relação à maneira como as doenças devem ser olhadas e qual a importância atribuída a elas. No caso do câncer, no período estudado por Messora, a doença ganhou notoriedade em São Paulo no contexto de um uso cada vez maior de tecnologias médicas avançadas.

“Ao mesmo tempo, o câncer começa a ser utilizado numa linguagem do viver social. Então, a política pode ser um câncer, a sociedade pode ser um câncer, os negros podem ser um câncer, os nordestinos que estão chegando podem ser um câncer. Há um espraiamento simbólico”, explica o docente, referindo-se a preconceitos que marcaram o período entre 1892 e 1953. “Essa aproximação do câncer o tempo todo como uma coisa muito ruim e que pode também servir de peça acusatória de determinados grupos, determinadas situações, ele [Messora] consegue flagrar na documentação”, emenda Mota, que orientou o trabalho.

Por meio da análise das representações e da simbologia da doença durante o período, Messora identificou quatro aspectos que permaneceram sempre presentes: a nomenclatura, a invencibilidade, a individualidade e o “estatuto maldito” da doença. “O trabalho mostra que isso não se dá de uma maneira natural. É uma construção histórica que vai se dar por diversos discursos e por diversas interações médicas, de saúde e socioculturais, todas elas em um eixo circular no qual todas as coisas se conversam”, comenta André Mota.

A história que Messora conta em sua dissertação de mestrado começa em 1892, ano em que surge o Serviço Sanitário do Estado de São Paulo. O câncer, então, ainda não era compreendido da mesma forma que hoje. Causava medo e era tratado como motivo de vexame para as famílias dos pacientes. Os doentes eram culpabilizados pela doença por não levarem uma “vida correta” e frequentemente o câncer era associado à homossexualidade, numa perspectiva bastante moralista.

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Foto: Marcos Santos/USP Imagens

André Mota, coordenador do Museu Histórico da FMUSP.

As famílias pediam para os médicos no atestado de óbito não colocarem que foi câncer”, conta o historiador. Nos jornais, a doença aparecia pontualmente nos obituários, mais frequentemente como metáfora – “o câncer do papel moeda, o câncer da escravidão” – e eventualmente em conteúdo sobre o tratamento com elixires, pomadas, massagens e, já no começo do século XX, gabinetes radioterápicos. Os médicos ainda não tinham o monopólio do tratamento. Esse panorama começa a mudar com a criação do Serviço Sanitário.

Na avaliação do pesquisador, a instituição foi fundamental para iniciar uma mudança na forma como as pessoas percebiam a doença. Havia um setor responsável pelos Anuários Demográficos, que eram enormes cadernetas onde se anotavam os dados estatísticos relativos a doenças, mostrando uma alta nos registros de mortes por câncer. Essas estatísticas acabaram servindo como “um instrumento retórico de convencimento do poder público”, analisa Messora. Havia também uma Inspetoria de Profilaxia de Lepra e Doenças Venéreas, que, apesar do nome, também cuidava dos casos de morte por câncer.

Após a virada do século, as iniciativas para desenvolver a pesquisa e o tratamento começaram a se multiplicar. Estudantes e médicos passaram a se debruçar mais sobre o tema na Faculdade de Medicina e teorias como a da origem bacteriana do câncer, que circulava no século XIX, foram perdendo espaço. A comunidade médica se organizou sem ajuda financeira do governo federal para fazer frente à ocorrência da doença.

Foram fundados o Instituto Arnaldo Vieira de Carvalho, na Santa Casa, para atender pacientes de câncer e outras doenças; o Hospital Umberto I, que tinha um setor especializado para os cancerosos; e a Associação Paulista de Combate ao Câncer, embrião do Hospital A. C. Camargo. Já na década de 1940, o discurso nos jornais e cartazes era diferente daquele da virada do século. Agora, os médicos estavam travando uma guerra contra o câncer. Não por acaso, a conjuntura política era a da Segunda Guerra Mundial.

O marco final da dissertação é justamente a fundação do A. C. Camargo, o primeiro centro médico de São Paulo dedicado exclusivamente ao câncer, em 1953. O hospital “foi celebrado em São Paulo como um grande hospital, a grande vitória dos paulistas contra o câncer, contra um obstáculo civilizacional”, diz o pesquisador. O preconceito, no entanto, não havia sido vencido. Messora lembra que um dos fundadores do hospital, o médico Antônio Prudente, chegou a publicar em O Estado de S. Paulo um pedido às pessoas que parassem de atravessar a rua com medo ao passar perto do local, pois não pegariam a doença respirando o ar do centro médico.

“Eu percebi com essa pesquisa que existem dimensões para além do biológico a respeito do câncer, que se referem basicamente aos estigmas e tabus que os sujeitos na época chamados cancerosos carregavam. E que esses estigmas e tabus também são determinados pela conjuntura da época em que eles viviam. Não são medidas medicamentosas que vão dar conta desses tabus”, conta o pesquisador, que trabalha também como educador na Escola Móvel do hospital do Graacc. Para Messora, a escola é um exemplo prático de medida não medicamentosa que procura combater um efeito não biológico do câncer: a evasão escolar das crianças em tratamento.