Crianças que brincam são mais saudáveis, garantem especialistas
Carinho e estímulos dispensados aos pequenos nos primeiros seis anos de vida ajudam a evitar problemas na fase adulta, como abuso de drogas
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Jornal do Senado/Especial Cidadania
Investir nos primeiros seis anos de vida das crianças pode reduzir problemas como violência e consumo de drogas. Mas não basta garantir acesso à saúde e educação, dar as vacinas em dia e fornecer boa alimentação. Estudos e pesquisadores mostram que é preciso satisfazer também a sede de brincar.
A brincadeira é um elemento indispensável para uma infância feliz e um importante instrumento de socialização. Entre os benefícios das atividades lúdicas, especialmente durante a primeira infância, estão o desenvolvimento da autoestima, o estabelecimento de vínculos com os pais e o aumento da capacidade de sentir empatia pelos outros. Pelo brincar, as crianças também aprendem a lidar com problemas, resistir à pressão de situações adversas e a viver em sociedade.
Após analisar o cérebro de 128 crianças negligenciadas, uma pesquisa da Universidade de Wisconsin-Madison (EUA) constatou que elas possuíam tamanho reduzido de amígdala e hipocampo — estruturas cerebrais associadas às emoções e à memória — em comparação com crianças que foram estimuladas a brincar.
Ainda de acordo com esse estudo, crianças que não recebem a atenção dos pais são mais propensas a desenvolver estresse na infância, o que aumenta os riscos de dependência em drogas, alcoolismo e obesidade na fase de adulta.
De acordo com José Martins Filho, médico especializado em pediatria social e presidente da Academia Brasileira de Pediatria (ABP), a interação do bebê com os pais é fundamental para seu desenvolvimento saudável. A criança que não recebe aconchego, diz o pediatra, pode sofrer de “estresse tóxico precoce”. Brincar, segundo ele, é uma forma de demonstrar carinho aos pequenos.
— Todo mundo diz que ama as crianças, mas esquece de dizer a elas que são amadas. Brincar é uma forma de demonstrar o amor — disse o pediatra, que participou, nos dias 22, 23 e 24 de novembro, no Senado, da 9ª Semana de Valorização da Primeira Infância, evento que reuniu especialistas para discutir cuidados necessários nos primeiros seis anos de vida.
Marilena Flores Martins, fundadora da Associação Brasileira pelo Direito de Brincar (IPA Brasil), também aponta que a negligência dos adultos em atender às necessidades físicas e emocionais das crianças, como brincar, pode provocar danos profundos, que acompanharão a sua vida adulta.
Segundo ela, a falta de cuidados com as crianças durante seus seis primeiros anos de vida compromete a capacidade de aprendizado, de memória e de formação de vínculos afetivos na vida adulta. Também as deixa mais suscetíveis a comportamentos violentos e a doenças como depressão e ansiedade.
— Ao brincar, as crianças desempenham vários papéis. Elas aprendem a ter humor, a rir de si mesmas e a desenvolver empatia pelo outro — disse Marilena.
O ato de brincar é tão importante, segundo Marilena, que tem sido usado com forma de superação de traumas em regiões de conflitos armados e em situação de catástrofe. O expediente foi largamente utilizado em 2011 no Japão para ajudar crianças a se recuperarem de um terremoto que atingiu o país.
Organizações não-governamentais também estimulam crianças a brincar em países como a Síria e Afeganistão, marcados por constantes conflitos.
Fim da brincadeira
Mas Marilena Martins teme que o ato de brincar esteja caminhando para a extinção. Segundo ela, pais preocupados com a competitividade dos filhos no mercado de trabalho acabam sobrecarregando as crianças com quantidade excessiva de atividades extracurriculares.
— O resultado? Os pequenos não têm tempo para fantasiar e experimentar o mundo e perdem a noção do que é ser criança — lamenta.
O tempo ocioso é importante para a criança brincar livremente e desenvolver a imaginação.
— A criança precisar ter tempo para brincar. Ela precisa de atividades estruturadas como oferece a escola, mas também de atividades não estruturadas. É brincando que a gente descobre o sentido da vida. É obrigação dos adultos oferecer as oportunidades para que a criança brinque — argumentou.
Pais sem pressa
Na contramão dessa tendência, cresce um movimento chamado Slow Parenting (pais sem pressa), que prega que as crianças tenham menos compromissos e possam explorar o mundo a seu tempo. O movimento, difundido nos Estados Unidos e na Europa, vem ganhando adeptos no Brasil.
Inspiradas nessa ideia, as amigas Mariane de Oliveira e Iza Garcia, que mantêm um blog sobre atividade infantis, criaram o Slow Fun Brasília. O evento, que já teve duas edições, propõe que pais e filhos desliguem seus aparelhos e interajam entre si. Na programação, atividades nada tecnológicas como piquenique, danças e gincanas.
— O Slow Fun Brasília é dedicado ao brincar sem pressa e sem eletrônicos e à interação entre famílias e crianças. Em um mundo de velocidade máxima, a ideia do movimento Slow Parenting é criar os filhos em velocidade mínima — explicam.
Tecnologia deve ser usada com limites e supervisão
Se não há dúvidas sobre os benefícios de andar de bicicleta e pular amarelinha, as brincadeiras que envolvem o uso de dispositivos tecnológicos como tablets, celulares e videogames geram questionamentos quanto a prejuízos ao desenvolvimento na primeira infância.
Marilena Martins, do IPA Brasil, afirma que os aparelhos eletrônicos não trazem os mesmos benefícios de brincadeiras tradicionais. Segundo ela, pesquisas evidenciam que a exposição frequente a televisão, smartphones e computadores pode prejudicar crianças pequenas, dificultando a socialização e o desenvolvimento da capacidade motora, por exemplo.
— Até 2 anos o ideal é ficar longe da TV e de outras tecnologias. Não existe equipamento que possa substituir o contato humano — disse.
A Academia Americana de Pediatria recomenda que crianças menores de 1 ano e meio não sejam expostas a televisão, computador ou tablets.
Outras pesquisas, no entanto, mostram que jogos, vídeos e aplicativos podem contribuir para o raciocínio lógico e o desenvolvimento motor e cognitivo das crianças, desde que devidamente desenvolvidos para esse fim, aponta a especialista em comportamento digital Juliana Grasso. Para ela, o problema não está na tecnologia em si, mas no uso exagerado, que pode levar ao sedentarismo.
— O uso excessivo de internet por crianças e adolescentes significa menos tempo em outras atividades. Daí a gente consegue tirar algumas conclusões, mas hoje não podemos predizer as consequências de fato. Temos que olhar de forma atenta, não podemos esperar para pagar o preço no futuro — apontou.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) orienta pais e educadores a não deixar que crianças de 2 a 5 anos fiquem mais de uma hora por dia em computadores ou similares.
Uso consciente
É cada vez mais comum crianças de 4 e 5 anos dominarem o touchscreen das telas, mas não conseguirem amarrar os tênis, explica Juliana Grasso. O exemplo dos pais é fundamental, acrescenta. Pesquisa sobre a percepção das crianças em relação ao uso de smartphones pelos pais apontou que 54% dos filhos acreditam que os pais checam demais o telefone e se sentem menos importantes do que os aparelhos.
— Estamos falando de uma questão de saúde emocional. E 28% dos pais começam a perceber que não estão dando bom exemplo — detalhou.
Os pais também devem sempre supervisionar os conteúdos acessados pelas crianças, recomenda a especialista em comportamento digital.
— As crianças não têm maturidade para elaborar e entender muitos dos conteúdos a que estão expostos — avalia.
Seguidores
As irmãs Ester, de 5 anos, e Eloah, de 10, têm juntas mais de 500 mil seguidores em dois canais na plataforma de vídeos YouTube. É possível acompanhá-las dando comidinha de faz de conta para bonecas, fantasiadas de médicas de brinquedos ou se divertindo em uma piscina. Elas teriam a rotina comum de qualquer criança, mas está tudo publicado.
As meninas fazem parte do recente fenômeno dos youtubers mirins — crianças que, apoiadas pelos pais, vêm angariando expressiva atenção na web com seus vídeos.
Segundo a mãe das duas, Eliane Lourenço, 33, que tem ainda outro filho, Silas, de 3, os filhos podem brincar com tablets e outros dispositivos eletrônicos, mas sempre sob supervisão.
— Eu costumo estar sempre por perto. Acho que tem um lado negativo quando os pais deixam celulares com os filhos e não observam o conteúdo, mas se os pais estão por perto, monitorando, não tem problema. Existe muito conteúdo de qualidade para as crianças — avalia.
Eliane afirma que a ideia de criação dos canais veio das próprias meninas.
— O processo de filmagem é, para Ester e Eloah, uma grande brincadeira. A Eloah viu uma menina brincando no Youtube e pediu para fazer vídeos. A Ester começou a imitar a irmã. Elas criam as histórias com as bonecas na hora da gravação — diz.
Eliane reforça que as crianças adoram brincar com dispositivos eletrônicos, mas não ficam limitadas a isso. A família costuma fazer passeios semanais em parques e áreas livres.
Tempo livre
Supervisão também é a palavra de ordem na casa de Adélia Segal Ramos, 33 anos. Tablets, televisão e smartphones não são proibidos, mas estão no final da fila de atividades preferidas pelos filhos.
Na rotina diária, os compromissos de Luca e Lis, na primeira infância, são a escola e as aulas de natação. O resto do tempo é livre, dedicado às brincadeiras e à imaginação.
— Eles não pedem muito para usar tablets e celulares porque nós, os pais, não temos o hábito de ficar o tempo todo no computador. A gente usa o smartphone quando é necessário. Eles pedem, mas a gente desconversa e diz que é melhor que eles brinquem de outras coisas — relatou.
A família optou por ter apenas uma televisão para manter o conteúdo sempre sob supervisão.
— A televisão fica na sala e, quando os pequenos estão assistindo, estamos sempre por perto — conta Adélia.
Atividades em família também são hábito. Toda quarta-feira, Luís, pai de Luca e Lis, tira folga do trabalho para andar de bicicleta e brincar com os filhos em parques e locais ao ar livre, quando não chove. O mesmo se repete nos fins de semana.
— Crianças que ficam na frente de uma tela muito tempo deixam de fazer amiguinhos, não aprendem a dividir e a compartilhar — acredita Adélia.