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Congresso combate violência obstétrica

em Especial
quarta-feira, 16 de março de 2016
cidadania a temporario

Congresso combate violência obstétrica

Contrariando as normas do Ministério da Saúde, muitas maternidades submetem mulheres a intervenções e condutas inadequadas e agressivas. Projetos buscam garantir a adoção do parto humanizado como lei

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Agência Senado/Especial Cidadania

Uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto no Brasil, segundo a pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo. Para a senadora Ângela Portela (PT-RR), os índices de violência obstétrica no país são altos e preocupantes.

— Cesáreas excessivas e sem necessidade, tratamento abusivo, desrespeito moral, físico e psicológico. Atitudes que fragilizam a mulher num momento que deveria ser sublime — disse.

Por mais que pareça claro que a responsável por trazer um bebê ao mundo seja a mãe, a ideia de que é o médico quem “faz o parto” provoca cada vez mais casos de violência.

Qualquer ato ou intervenção direcionado à grávida, parturiente, que acaba de dar à luz, ou ao seu bebê é considerado violência obstétrica se for praticado sem a informação e o consentimento explícito da mulher ou se desrespeitar sua autonomia como mãe, sua integridade física e mental, seus sentimentos, suas opções e suas preferências.

A coordenadora-geral de Saúde das Mulheres do Ministério da Saúde, Maria Esther de Albuquerque Vilela, diz que muitas práticas feitas durante o parto prejudicam sua boa evolu- ção. Algumas ainda aumentam o índice de sequelas graves e o risco de morte para mãe e bebê.

Etelvino Trindade, Angela Portela e Maria Esther debatem a violência obstétrica na Comissão de Direitos Humanos, em dezembro.— Mesmo sendo práticas institucionalizadas, muitas vezes endossadas pela academia, elas foram construídas com uma ideia ultrapassada de que a mulher deve parir com dor, como se fosse uma expiação do prazer que ela teve ao fazer o filho. Uma penalização da mulher pela sua sexualidade. Com o tempo, ficou comprovado que essas práticas não têm fundamento científico e causam um sofrimento desnecessário — lamentou.

A lista de procedimentos inadequados (veja quadro ao lado) é grande e muitas mulheres nem sabem que podem considerá- -los violência. Há uma série de condutas que precisam estar muito fundamentadas para serem apresentadas como opção de atendimento, não podem ser rotina, explicou Valéria Sousa, diretora de Relações Legislativas da Artemis, organização que atua na defesa e promoção dos direitos das mulheres.

mat01c a temporario— Algumas são proibidas, outras só devem ser feitas com cuidado e seletividade. E todas precisam ser autorizadas pelas mulheres antes de serem feitas.

A pesquisa Nascer no Brasil — estudo coordenado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em 266 maternidades de 191 municípios, em 2011 e 2012 — constatou, por exemplo, o uso de ocitocina, da manobra de Kristeller e da episiotomia em porcentagens muito elevadas: em 60%, 56% e 86% dos partos, respectivamente.

O presidente da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), Etelvino de Souza Trindade, acredita que, para mudar essa cultura, é preciso um processo de desconstrução.

— O atendimento obstétrico brasileiro é fora do contexto mundial. No resto do mundo, a mulher escolhe o local do parto e é atendida por uma equipe, da qual fazem parte enfermeiras obstetrizes. O médico só intervém quando há alguma intercorrência não esperada — afirmou.

Segundo Trindade, no Brasil era assim, mas começou a mudar em 1967, quando os institutos de aposentadoria e pensões que existiam foram fundidos e centralizados no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS).

— Uma norma na época determinou que o médico não receberia para estar disponível. Só era pago se atuasse no parto. Isso gradativamente alijou o enfermeiro obstétrico do processo e criou uma estrutura medicocêntrica — explicou.

Em 1990, o INPS e o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) foram extintos e foram criados o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e o Serviço Único de Saúde (SUS), com outras regras.

— Mas essa cultura permaneceu. É muito difícil desfazer a percepção existente. É preciso um processo de esclarecimento não apenas das mulheres, mas também das famílias, dos profissionais de saúde e de todo o grupo que cerca a acolhida ao parto, desde a recepção da maternidade. Uma mudança também nas escolas médicas e de enfermagem. Todos precisam entender que a mulher é a protagonista do parto — disse.

Legislação
O país já tem diversas normas que buscam a adoção do parto humanizado não apenas no SUS, mas nos hospitais particulares. Valéria Sousa explica que o parto humanizado não é um produto a ser adquirido para quem pode pagar mais, mas sim é um modelo de atenção que efetivamente reduz a mortalidade. Só quem tem competência para determinar o que pode ser executado como prática de saúde é o Ministério da Saúde, segundo a Lei 8.080/1990.

— E o ministério já expediu como norma o parto humanizado, ou seja, a atenção obstétrica e neonatal que leve em consideração a mulher e o bebê como sujeitos de direito e determina que todas as condutas sejam previamente discutidas com a mulher e autorizadas por ela.

Ainda segundo a diretora da Artemis, a atenção humanizada ao parto é uma resposta à CPI da mortalidade materna que aconteceu na Câmara dos Deputados de abril de 2000 a março de 2001, onde se concluiu que 98% das mortes maternas são evitáveis com procedimentos simples e políticas públicas de atenção focadas na mulher e no bebê, e não nas necessidades dos profissionais de saúde. Daí surgiram várias normas e mesmo algumas leis para evitar a violência obstétrica no Brasil (veja no “Saiba Mais” o link para essas normas).

Propostas
Valéria ressalta que, mesmo diante dessas normas, os descumprimentos aos direitos das gestantes permanecem. Por esse motivo, em 2014, a Artemis sugeriu ao deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) uma proposta que prevê a elevação à categoria de lei federal para todas essas iniciativas do governo, e ele apresentou o projeto na Câmara:

— Muitas mulheres passam em silêncio pela violência obstétrica. Uma violência naturalizada, institucionalizada e que deixa marcas físicas e psíquicas por toda a vida. O nascer de uma criança deveria ser um momento de celebração, e não de cicatrizes. E como tudo na vida de uma mulher, decidir qual tipo de parto será melhor para ela e seu filho é um direito e uma prerrogativa — defendeu o deputado.

Marília Mercer, doula de Londrina (PR), diz que há vários projetos de lei sendo votados e aprovados nos municípios para que os hospitais sejam obrigados a aceitar a presença das doulas. Mas que o ideal seria uma legislação federal, que todos tivessem que cumprir. Há ainda casos de entidades que tentam legislar sobre o assunto, como o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, que em 2012 editou resoluções que proibiam médicos de fazer partos domésticos e vetavam a participação de parteiras e doulas como acompanhantes de gestantes em hospitais.

— Esse tipo de medida acaba sendo derrubada, mas dá trabalho. A expectativa é que com o parto humanizado estando previsto em lei, e não apenas em material infralegal,seja garantida maior efetividade no cumprimento — disse Marília.

Valéria acrescenta que, “com a aprovação de uma lei, as boas práticas de saúde sairão do âmbito de governo, como política, e passarão a compor as garantias fundamentais de todos os cidadãos”.

— Já estamos muito atrasados porque os compromissos assumidos pelo Brasil com as Nações Unidas para redução da mortalidade materna são de 1995, da Convenção de Pequim. É uma das Metas do Milênio e a única que não conseguimos cumprir. Muito provavelmente porque hoje tem muito hospital e profissional que desrespeita os direitos da mulher, já que não há lei prevendo que tipo de punição ele poderia sofrer — ressaltou.

Doulas oferecem orientação, suporte físico e emocional à família na gravidez e no parto

dou 04 temporarioMesmo as mulheres que conhecem os seus direitos e os procedimentos para um parto humanizado estão sujeitas a ser vítimas de violência obstétrica. Foi o que aconteceu com Rafaela Ramos e Michelle Ramos dos Santos, em Brasília.

No nascimento de seu primeiro filho, Rafaela foi submetida a uma cesariana porque o médico disse que o bebê era muito grande e que ela tinha diabetes gestacional, sendo que nenhum dos dois fatos tinha sido detectado em exames no pré-natal. Na segunda gesta- ção, ela planejou inicialmente um parto domiciliar, mas acabou mudando de planos e, ao chegar ao hospital, foi hostilizada por isso. Enquanto estava sozinha com as enfermeiras, ela se recusou a deixar colocarem em seu braço o acesso ao soro, pois não queria o uso de medicamentos. Uma enfermeira a deitou na maca, puxando-a pelos cabelos. Somente com a presença do marido dela no quarto a conduta das enfermeiras mudou, o que a fez sentir-se fragilizada.

Michelle também não foi respeitada no parto de sua filha. Enfermeiros e médicos fizeram toques excessivos, reclamaram quando ela gritava de dor, estouraram a bolsa amniótica artificialmente e disseram que a neném estava “descendo muito devagar”. Ela acabou se sentindo pressionada a fazer uma cesariana, porque a equipe médica de plantão no hospital não parecia preparada para um parto vaginal. Mas não sabe se a cirurgia realmente era necessária. Michelle diz que só não considera a experiência negativa porque teve o apoio de duas doulas durante o pré-natal e na maternidade.