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Brasil dá resposta insuficiente à violência de torcidas

em Especial
sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

O Campeonato Brasileiro de Futebol de 2019 não teve um desfecho melancólico apenas para o Cruzeiro, que terminou rebaixado à série B pela primeira vez em sua história

Nelson Oliveira e Ana Luisa Araujo/Ag. Senado/Especial Cidadania

A revolta dos torcedores cruzeirenses, reunidos em torcida única no Mineirão na tarde do domingo (8), mostrou que o país mais uma vez falhou em estabelecer um padrão de convivência civilizada no ambiente de seu principal esporte.

Irada diante do segundo gol do Palmeiras, uma parte do público esqueceu-se momentaneamente de suas glórias antigas e recentes. Passou a quebrar cadeiras, jogá-las no campo, estourar rojões e depredar banheiros. A Polícia Militar explodiu bombas de efeito moral e, de acordo com alguns informes jornalísticos, até atirou balas de borracha, enquanto pais tentavam desesperadamente proteger seus filhos. O juiz da partida, então, decidiu encerrar o jogo por volta dos 40 minutos do segundo tempo, mas não evitou que o saldo de pessoas socorridas chegasse a 30 pessoas.

Violência no Mineirão foi um recorte do cenário nacional que futebol vive. Foto: Reprodução/Sportv

As cenas de descontrole exibidas a partir de Belo Horizonte foram a reprise ampliada do espetáculo lamentável protagonizado no mesmo estádio por cruzeirenses e atleticanos no dia 10 de novembro, quando objetos atirados entre os rivais e um caso gritante de injúria racial contra um segurança lançada por atleticanos deram sequência a ameaças de morte a Thiago Neves, meia atacante do Cruzeiro.

Fosse a violência apenas reflexo da crise vivida na Toca da Raposa e os problemas de cidadania no futebol brasileiro mereceriam uma solução cirúrgica, a cargo das autoridades e dirigentes esportivos de Minas Gerais. Mas, como provam os torcedores flamenguistas e botafoguenses, que trocaram socos e pontapés por ocasião do jogo do dia 7 de novembro no Engenhão,  os torcedores do Fluminense, que invadiram o centro de treinamento do clube em setembro, e do Palmeiras, que perseguiram companheiros da mesma paixão futebolística, por motivos fúteis, pelo menos duas vezes, 2019 será lembrado como mais um ano em que todas as torcidas perderam.

Os efetivamente envolvidos nas brigas do Mineirão, do Engenhão e nas demais país afora, estão sujeitos a enquadramento no Art. 41-B do Estatuto do Torcedores (Lei 10.671/2003): “Promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito aos competidores em eventos esportivos”, cuja pena é reclusão de um a dois anos e multa. Entretanto, por falta de estatísticas, é difícil saber se a lei está sendo cumprida.

Embora forneça um retrato da recorrente violência no futebol brasileiro, os episódios em Minas e no Rio estão longe de igualar a grotesca tragédia de 2 de maio de 2014 em Recife. Naquela ocasião, Paulo Ricardo Gomes da Silva, de 26 anos, morreu atingido por um vaso sanitário lançado próximo à entrada de visitantes do estádio do Arruda por torcedores do Sport Recife. Torcedor do Santa Cruz, ele se juntara à torcida do Paraná, que acabava de disputar uma  partida pela Série B do campeonato brasileiro com o Sport.

Julgados em 2015 pelo crime, Everton Filipe Santiago Santana, de 23 anos, Luiz Cabral de Araújo Neto, de 30 anos e Waldir Pessoa Firmo Júnior, de 34 anos, foram condenados pelo júri popular a penas entre 25 e 28 anos de prisão. Após o julgamento, a promotora Dalva Cabral disse considerar que a condenação era exemplar e contribuiria decisivamente para inibir a violência entre torcedores. “Esse julgamento marca um novo tempo”, declarou, segundo a Agência Gazeta Press.

Desde então, as mortes de torcedores, que haviam  cedido em seguida ao pico assustador de 2013 tiveram uma leve queda e se mantiveram estáveis, na média de 12 por ano, até 2018. Em 2019, baixaram a três, de acordo com os números provisórios apurados pelo sociólogo Maurício Murad, coordenador do Programa de Pós-graduação da Universidade Salgado de Oliveira (Universo), de Niterói (RJ). Outros casos ainda estão em investigação.

Se as mortes recuaram em 2019, a violência em geral não arrefeceu, em conexão, segundo Murad, com o quadro de mazelas sociais e o aumento do consumo e do tráfico de drogas como ecstasy e cocaína, esta um “combustível pra porrada”, como declarou um brigão ao sociólogo.

Ultimamente, o pesquisador passou a incluir em suas apurações a influência de neonazistas, aprofundando um cenário de contaminação das torcidas organizadas por grupos que ele considera minoritários, mas capazes fazer os espetáculos futebolísticos degenerarem em pancadaria, insultos e ameaças a jogadores e integrantes de torcidas adversárias.

Este ano, o tempo esquentou também no vôlei, esporte igualmente regido pela Lei 10.671: a torcedora-símbolo do Cruzeiro, Maria Salomé da Silva, de 86 anos, passou por momentos de tensão ao ser envolvida em um outro tumulto entre cruzeirenses e atleticanos no dia 3 de dezembro, quando uma jovem de 15 anos foi ferida a pauladas. Ela, que era hipertensa, morreu de um problema cardíaco na madrugada desta terça-feira (10). A família, no entanto, descarta qualquer relação entre o falecimento e os episódios de domingo. A própria Salomé havia negado ter sido atingida a confusão do dia 3, que gerou um boletim de ocorrência no qual ela aparecia como vítima. 

Tanto as invasões do campo de jogo, quanto as ameaças a Thiago Neves — e o ataque envolvendo Dona Salomé — se caracterizados como ações de torcidas organizadas, já cabem nas punições incorporadas ao Estatuto do Torcedor pela Lei 13.912/2019: afastamento da torcida, seus associados ou membros, de eventos esportivos pelo prazo de até 5 (cinco) anos. A regra anterior estabelecia impedimento por até três anos. O texto, de autoria do deputado Andre Moura (PSC-SE), foi aprovado pelo Senado em 30 de outubro e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro no dia 25 de novembro.

A punição a delitos que acontecem fora dos locais e horários de competição é outra novidade da lei. Cerca de 90% dos conflitos não têm lugar dentro dos estádios, segundo Maurício Murad. Escaramuças entre flamenguistas e botafoguenses foram registradas, por exemplo, no bairro da Taquara, em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio, a 12 quilômetros do Engenhão.

Para a relatora das mudanças no estatuto, senadora Leila Barros (PSB-DF), o projeto mereceu ser aprovado, não só por ampliar o prazo de impedimento imposto às torcidas organizadas e a dirigentes envolvidos em atos proibidos pelo estatuto, mas também por aumentar a pena para delitos praticados fora do ambiente que é sede do evento desportivo.

“Em 2019, já vimos vários episódios de centros de treinamento de equipes de futebol que foram invadidos por torcidas que protestavam contra o mau rendimento de suas equipes, várias ocorrências de hostilidade por parte de torcedores contra jogadores em seus momentos de folga. Esporte, torcida, gera paixão gera nervos inflamados, então acho que é muito interessante essa alteração de Estatuto”, disse Leila durante a votação da matéria no Plenário do  Senado. Na mesma linha opinou a senadora Rose de Freitas (Podemos-ES).