Ampliação adequada do Parque dos Veadeiros pode garantir proteção a 50 espécies
O simpático pato mergulhão, de penacho na cabeça e bico longo e serrilhado para capturar peixes diretamente dentro d’água, tem apenas 200 exemplares em todo o mundo, 70 deles na região na Chapada dos Veadeiros (GO), de acordo com o pesquisador da UnB e doutor em ecologia, Reuber Brandão. Considerado uma das dez aves aquáticas mais ameaçadas do planeta, o pato-mergulhão está na lista das 32 espécies da fauna e 17 da flora que podem ser extintas caso a ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros não seja feita de acordo com a proposta formulada pelo Ministério do Meio Ambiente, contestada pelo governo de Goiás.
Cachoeira dos Cariocas, no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. |
Luana Lourenço/Agência Brasil
O projeto original prevê o aumento dos atuais 65 mil hectares para 222 mil hectares, em área contígua. No entanto, uma contraproposta apresentada pelo governo de Goiás na última semana autoriza a anexação de apenas 90 mil hectares à unidade de conservação, excluindo da ampliação as terras que dependem de regularização fundiária, formando uma espécie de peneira de áreas protegidas.
Apesar de não ser a maior unidade de conservação do Cerrado, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros tem uma importância estratégica para a proteção da região, segundo a pesquisadora e professora do Departamento de Ecologia da UnB, Mercedes Bustamante. “O parque é extremamente importante para a região e para o bioma por tratar-se de áreas de Cerrado de altitude com endemismos (representantes de flora e fauna restritos a essa região) significativos”, destaca. A lista de animais ameaçados de extinção identificados na área também inclui a onça-pintada; o socó boi jararaca; a águia-cinzenta; o cachorro do mato vinagre e duas espécies símbolo do Cerrado: o lobo-guará e o tamanduá-bandeira.
Para a flora, a ampliação do parque vai garantir a conservação de formações vegetais do Cerrado até agora desprotegidas, como a mata seca, predominante na região do Pouso Alto, a mais alta do Planalto Central, hoje fora dos limites oficias do parque. Além dessa, mais oito formações vegetais do bioma fazem parte do novo desenho da unidade: matas de galeria, cerradão, cerrado sentido restrito, parque cerrado, vereda, campo sujo, campo limpo e campo rupestre.
Segundo especialistas em Cerrado, pelas características do bioma, a demarcação fragmentada das áreas a serem protegidas não garante o grau de preservação que cabe a uma unidade de conservação de proteção integral. “A fragmentação reduz a sua efetividade da área protegida, com redução do fluxo gênico, impactos sobre a funções importantes dos ecossistemas como ciclos do carbono e da água, e aumenta o impacto que as transformações no entorno das áreas tem sobre o interior protegido”, ressalta Mercedes.
Além disso, o modelo de “peneira”, com áreas não protegidas no interior do parque, inviabiliza a sobrevivência de algumas espécies ameaçadas, como a onça-pintada e o lobo-guará, que precisam de áreas extensas para suas atividades e reprodução. “Se pensarmos nas populações de antas, onças, lobos-guará e gaviões, estamos falando de animais que precisam de grandes extensões para caçar e sobreviver. A águia-cinzenta, que habita a região, já não tem sido vista pelos pesquisadores com a mesma frequência”, explica Brandão.
Já o pato-mergulhão precisa de águas cristalinas para capturar seu alimento diretamente dos rios. Se os cursos d´água são afetados pela atividade agropecuária, instalação de pequenas centrais hidrelétricas ou até pela mineração – ameaça que ainda ronda a Chapada dos Veadeiros – o bicho não consegue sobreviver e desaparece. O pato-mergulhão é reconhecido inclusive como espécie bioindicadora, ou seja, a presença dele em uma determinada área revela um bom estado de preservação do ambiente, justamente o que está em risco na região dos Veadeiros neste momento.
“É preciso garantir a preservação dessas espécies para que a gente possa reverter o quadro de ameaça de extinção”, diz a especialista em pato-mergulhão Gislaine Disconzi, coordenadora do Censo Neotropical de Aves Aquáticas no Brasil. “A proposta [do governo de Goiás] vem com uma colcha de retalhos, é uma fragmentação tão grande do sistema que não ajuda, não melhora as condições atuais. Não tem valor científico, não foram levados em conta os critérios de biodiversidade. A proposta que o ICMBio e o MMA fizeram é a correta, em área contígua, e contempla critérios de biodiversidade, é para isso que se quer a ampliação”, acrescenta a bióloga.
Responsável pela descoberta de 11 espécies de anfíbios, nove delas na Chapada dos Veadeiros, Reuber Brandão destaca o potencial de novos achados científicos na região, atividade que pode ser estimulada com a decretação da nova área do parque. Sua última descoberta foi em novembro: uma rã ainda não batizada, encontrada na Reserva Natural Serra do Tombador, uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) a cerca de 20 quilômetros do parque federal.
O secretário executivo do Conselho Estadual de Meio Ambiente de Goiás, Rogério Rocha, reconhece que a ampliação fragmentada pode não ser a ideal para a biodiversidade e para a implementação administrativa da nova área do parque, mas diz que a contraproposta priorizou a situação das famílias que vivem na área, algumas há décadas. Segundo ele, após a regularização fundiária de todas as áreas, o governo de Goiás vai dar o aval para a extensão do parque também nessas terras.
“Tem um motivo essa autorização de fazer esses 90 mil hectares agora, é uma sinalização para o Ministério do Meio Ambiente de que nós somos a favor da ampliação. Goiás nunca foi contra, mas é que tem que ter uma expansão com responsabilidade social. A gente não pode garantir abstratamente ou juridicamente a proteção de uma área e esquecer de 230 famílias, essa é a questão”, argumenta. Além disso, segundo Rocha, a intenção do governo de Goiás é criar na região do parque a Estação Ecológica Nova Roma, um tipo de unidade de conservação de uso ainda mais restrito que um parque nacional. “É uma área com nível máximo de proteção. São 7 mil hectares que são só para pesquisa e pesquisa com autorização. Isso está no meio do parque”, pondera.
A conservação dos recursos hídricos, que dão ao Cerrado a fama de “caixa d’água do Brasil”, pela quantidade e importância das nascentes do bioma, também pode ganhar fôlego com os novos limites do Parque dos Veadeiros, beneficiando atividades como o ecoturismo com foco nas belas cachoeiras da região e até a agropecuária, essencial para Goiás. “Os rios que nascem na Chapada também alimentam a Bacia Amazônica”, lembra Brandão. O Rio Preto, por exemplo, cuja nascente hoje está fora da área de proteção no parque, deságua no Rio Tocantins, braço da Bacia Araguaia-Tocantins, uma das mais importantes do Brasil.
Por causa do impacto direto das mudanças da cobertura vegetal no regime de chuvas do Cerrado, o gestor ambiental da Fundação O Boticário, Danilo João Tenfen, diz que o impacto da decisão de não proteger determinadas áreas vai muito além dos efeitos sobre a fauna e a flora. “Converter esses ambientes naturais, florestas e fitofisionomias em plantações, monoculturas extensivas e pastos vai modificar o clima, o ciclo hidrológico e quem é mais afetado?”, questiona.
A pesquisadora e professora da UnB Mercedes Bustamante destaca que, por causa das mudanças climáticas, “as áreas de altitude estão entre as mais vulneráveis e devem ter sua proteção priorizada”, como é o caso de parte da Chapada dos Veadeiros, que chega aos 1,6 mil metros de altitude em alguns pontos ainda não abarcados pelo parque nacional.