A centralidade da cultura na construção da ‘japonesidade’
Dissertação investiga como se estabelecem as relações entre jovens descendentes de japoneses
Grupo japonês durante apresentação de ‘taikô’ na Fazenda Ribeirão, |
Luiz Sugimoto/Jornal da Unicamp
Ao visitar uma amiga nipo-brasileira que foi fazer faculdade em outra cidade, Juliana Carneiro da Silva se viu apresentada a pessoas, quase todas, também com traços orientais. “Você só tem amigos ‘japoneses’ aqui?”, perguntou. “Não, mas de fato te apresentei muitos ‘japoneses’ hoje. Parece que a gente se atrai”, ouviu. “Semelhanças que atraem: Um caleidoscópio nas relações entre jovens brasileiros descendentes de japoneses no estado de São Paulo” é o título da dissertação de mestrado de Juliana, orientada pela professora Amnéris Ângela Maroni, do Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).
Com a frase da amiga na cabeça, Juliana Carneiro passou a reparar que outros nipodescendentes também andavam em grupos. “Quis investigar porque isso acontece, pois o comportamento me pareceu contradizer a literatura sobre a imigração japonesa no Brasil, que enfatiza a grande integração deste contingente populacional com a sociedade brasileira. A dissertação trata das relações estabelecidas por jovens descendentes fora de espaços étnicos, como associações nipo-brasileiras e baladas e festivais orientais, com um recorte para o estado de São Paulo”.
A autora concentra sua pesquisa em dois pontos principais: problematizar a ideia de “japonês” (termo corrente no Brasil para denominar os nipo-brasileiros) e investigar as relações entre jovens descendentes atentando para conflitos e divergências que relativizam o conceito antropológico de “solidariedade étnica” – haja vista sua constatação de que a afinidade e a cumplicidade, no caso deles, nem sempre se realizam. “Há, sim, uma espécie de ‘confiança entre japoneses’ (como denomino na dissertação), mas a ascendência nem sempre é um fator decisivo para que as relações se estabeleçam; depende de como cada sujeito lida com as heranças japonesa e brasileira”.
A cientista social realizou incursões intermitentes a espaços tidos como japoneses, nipo-brasileiros ou orientais, entrevistando 15 jovens, incluindo alguns não descendentes que circulam por esses ambientes. O financiamento da Fapesp também propiciou um estágio de pesquisa na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS-Paris). “Nunca tinha ido a uma associação nipo-brasileira, nem sabia que existia uma em Sorocaba, minha cidade natal. Embora o foco de análise estivesse nas relações dos jovens ‘japoneses’ fora de espaços étnicos, achei importante visitálos para conhecer possíveis interlocutores e ter uma noção sobre as práticas locais. Também quis avaliar as relações pela perspectiva dos não descendentes”.
Na falta de contato com a cultura, observa Juliana Carneiro, cria-se uma série de expectativas, que vão se quebrando, como em relação às baladas orientais, que têm de diferente apenas uma maioria de frequentadores com traços orientais. “Em festivais tomei contato com o taikô (espetáculo com tambores) e o yosakoi soran (estilo de dança moderno). Circulando nesses espaços fui entendendo que a ‘japonesidade’ se constrói a partir da relação com a cultura – e que eu mesma posso me tornar uma japonesa. Muitos nipo-descendentes não têm proximidade com esse tipo de espaço; outros foram levados pelos pais desde pequenos, mas não gostam; e há os que gostam muito e fazem questão de manter o vínculo”.
A autora da pesquisa dedica o primeiro capítulo a um panorama das relações entre nipodescendentes ao longo da trajetória da imigração, a partir da chegada dos pioneiros ao Brasil. “Os primeiros imigrantes foram trabalhar nas fazendas de café, onde havia uma dispersão, pois eram poucos em cada propriedade; trabalhavam muito e tinham pouquíssimo contato. Saindo do regime de colonato e indicando uns aos outros onde havia terra boa, começaram a formar núcleos espontâneos, inclusive com intermediação de companhias de imigração japonesas. Nestes núcleos coloniais os imigrantes puderam se fortalecer através da criação de associações, que negociavam os produtos agrícolas coletivamente. Além disso, notamos que o governo e outras instituições do Japão acompanharam de perto o processo imigratório, facilitando a permanência de seus patrícios no Brasil”.
Essencialização étnica
Olhando para as relações no passado imigratório, a pesquisadora pôde perceber que o fato de serem todos nipônicos não implicava em total harmonia. “Desde o início, ao lado da ajuda mútua e da confraternização, convivem disputas, diferenças e tensões. Daí, um elemento chave da dissertação: a multiplicidade que se esconde sob a aparente homogeneidade. Os brasileiros se acostumaram a olhar alguém com traços orientais e associá-lo imediatamente a uma pessoa honesta, correta e trabalhadora. Utilizo na dissertação uma expressão de Jeffrey Lesser, ‘essencialização étnica’, ou seja, o julgamento que fazemos de uma pessoa a partir de sua etnicidade”.
A cientista social constatou que apesar de os próprios nipodescendentes se valerem do mecanismo da essencialização étnica entre si, ter traços orientais não é suficiente para ser considerado um japonês. “Ser japonês, na verdade, é um processo, um tornar-se. Várias vezes em que fui a campo, pessoas tomavam meu interesse por práticas locais como um desejo de ser japonesa. No entanto, é preciso encontrar vínculos pessoais com aspectos da cultura para que o processo de transformação possa se desenvolver”.
Este processo de tornar-se dá margem a múltiplas “japonesidades”, aspecto que levou Juliana Carneiro a se aproximar de um grupo de jovens pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). “O grupo é liderado pelo professor Igor Machado, que convidei para minha banca, e seu objetivo é justamente investigar os vários tipos de ‘japonesidades’ que existem no Brasil. A pesquisadora Claudia Winterstein, por exemplo, estudou o que é ser japonês para os otakus (fãs de animês e mangás), observando que para eles importa muito mais o conhecimento que a pessoa possui sobre este universo do que ser nipodescendente ou não – e existem muitos fãs não descendentes”.
Segundo a autora da dissertação, os artigos do grupo da UFSCar desvinculam o “ser japonês” da ascendência e dos traços físicos, como o que resultou de outra pesquisa, realizada por Gil Lorenção, focando o ambiente do kendô (arte marcial similar à esgrima). “É provável que este lutador, vinculado à ética dos samurais, não reconheça um otaku como japonês, e vice-versa. Cada um manifesta a ‘japonesidade’ à sua maneira. Devemos atentar ainda para os nipodescendentes que nem se consideram como ‘japoneses’, julgando que este aspecto não é relevante em suas vidas”.
Solidariedade étnica
No capítulo final, a cientista social vai mais fundo nas relações atuais dos jovens nipo-brasileiros, abordando o conceito de solidariedade étnica. “Se o ser japonês articula elementos múltiplos, as relações também apresentam múltiplas possibilidades. Optei por analisar as configurações relacionais de três interlocutoras, que recebem nomes fictícios e foram escolhidas por apresentarem mais claramente as possibilidades que encontrei também nos demais entrevistados”.
A pesquisadora chama de Débora Takara uma jovem que nunca se sentiu particularmente tentada a se aproximar de outros nipodescendentes, nem considera que as suas relações com eles fluam tão bem. “Ao contrário, ela sempre manteve certo distanciamento por achá-los ‘quietos’ demais e que, por isso, teriam pouco em comum com alguém falante como ela. Porém, transferiu-se para uma escola oriental e percebeu ali a multiplicidade, que nem todos são quietinhos. E é interessante que, ao narrar suas relações, Débora ressaltou muito mais o que via de brasileiro nos nipodescendentes dos quais se aproximou”.
Outra interlocutora, Karina Yamada, é uma universitária que, em ambiente onde só vê desconhecidos, tende a se aproximar de alguém com traços orientais, presumindo que sendo ambos criados dentro da mesma cultura teriam maiores afinidades e mais chance de a aproximação ser bem sucedida. “Segundo Karina, a boa recepção de fato acontece, mas na maioria das vezes as afinidades não são tão grandes quanto supunha e não resultam em relação duradoura. São desencontros decorrentes da questão da essencialização étnica: por serem nipodescendentes, imaginam que ambos apreciam J-pop [gênero musical], por exemplo”.
Já a também universitária Akemi Ohara morou com os avós, frequenta associações nipo-brasileiras desde pequena e esta proximidade com a cultura leva-a a acreditar que é diferenciada dos demais brasileiros, incluindo nipodescendentes que não foram criados como ela. “Hoje, ela convive majoritariamente com brasileiros, mas a relação com um nipodescendente que ‘se tornou japonês’ se aprofunda mais facilmente. Acha que ambos se entendem em suas singularidades, que ficam subentendidas, ao passo que para os outros precisa explicá-las”.
Juliana Carneiro conclui na dissertação que não existe um padrão relacional entre os nipo-brasileiros e que o nível da relação depende da forma como cada indivíduo lida com suas heranças japonesa e brasileira. “Talvez devamos fazer do koroniagô – língua híbrida do japonês como o português – uma metáfora para pensar a nipodescendência. Sempre tomamos o nipo-brasileiro pelo lado japonês, quando temos duas heranças, suas singularidades e inúmeras combinações. É um contexto muito fluído, em que não se pode fincar o pé. Não podemos afirmar de antemão que um grupo de ‘japoneses’ se forma a partir da herança japonesa. Assim, ao contrário do que eu imaginava no início desta pesquisa, não há necessariamente contradição entre a formação desse tipo de grupo e a integração à sociedade nacional, pois ambos os aspetos estão postos no contexto que estudo e se articulam formando combinações surpreendentes”.