Marco Antonio Spinelli (*)
Tem um filme que eu adoro, e já vou adiantando uns spoilers: psiquiatras tem a tendência de gostar mais de filmes “cabeça” do que a população em geral. Portanto, muita gente pode achar esse filme chato, lento e sem sentido. O pior é que a cena que vou descrever é a confluência de toda a trama, todo o conflito envolvido na trama. Considerem-se, leitor e leitora, avisados.
O filme se chama : “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”. É de 2004, com Jim Carrey e Kate Winslet. Jim Carrey é um comediante caótico e careteiro. Como todo comediante, faz o papel de um homem triste melhor do que ninguém. Seus papéis dramáticos são repletos de uma profunda tristeza. A narrativa não é linear, e o tristonho Joel, personagem de Carrey, encontra e desencontra de Clementine, personagem de Kate Winslet.
Essas histórias são marcadas por mudanças da cor do cabelo de Clementine, que vão do azul royal ao laranja dependendo do período da sua vida que está sendo retratada. Cenas lindas de encontro amoroso e perda, até nos darmos conta do que está acontecendo: Clementine e Joel foram procurar uma empresa que apaga as memórias que são dolorosas e o cliente procura apagar.
Clementine quer apagar Joel e Joel também quer apagar a geniosa namorada de suas lembranças. O conflito se dá durante o processo de apagamento, quando Joel se arrepende e tenta fugir do processo de apagamento. O problema é que ele está sedado, e não pode acordar e pedir para pararem de apagar as memórias de Clementine (do ponto de vista da Neurociência, é impossível deletar as memórias de uma pessoa só como os cientistas do filme fazem. Só na ficção).
Joel tenta levar Clementine para lugares da memória que não possam apagar: para sua infância, para lugares em que nunca estiveram, mas o neurocientista implacável vai até o fim e destrói as lembranças do casal. Não há mais chance deles se lembrarem de olhar para o céu deitados num lago congelado.
Mas adivinhe, leitora e leitor, o que continua acontecendo? Joel e Clemy continuam se reencontrando, se reapaixonam, e começam a brigar e se desentender. O que acontece de diferente é que dessa vez recebem umas fitas com as gravações de suas entrevistas, onde um queria apagar o outro das memórias.
Nesse momento entendem tudo: eles já tinham passado por aquilo muitas vezes: se encontraram, se apaixonaram, brigaram e tentaram apagar tudo o que foi vivido. Clementine fica desconcertada e vai saindo da casa de Joel, em tom de despedida. Ele pede para ela ficar, e diz que não há nada nela que ele não adore.
Ela responde (atenção: toda essa explicação descrita acima conflui para essa cena): “Você vai acabar se enchendo de mim, eu sou chata, eu me encho das pessoas, vou acabar só vendo defeitos em você, vai dar errado…” e ele responde: “Ok. Ela responde, desconcertada: “Ok?”. Ele confirma o Ok. Quase dizendo: vou te amar, vou te desamar, vou te perder. Ok.
Todo amor implica uma perda. Tem uma anedota zen que o monge anda com sua xícara preferida dizendo: para mim, a xícara já está quebrada. Gostar da xícara implica no risco de perdê-la. É incrível a quantidade de oportunidades que se perdem na vida pelo medo da perda. Depois de perder um pet, um cachorro ou um gato, ou qualquer outro bicho, tanta gente nunca mais abriga um animal de estimação para não passar por aquilo de novo.
Pergunto para quem leu esse texto até aqui (pois corro o risco de ter perdido alguns leitores durante a leitura desses parágrafos): Quem nunca? Quem nunca evitou uma relação, uma oportunidade, um projeto, por medo da perda?
O contrário da coragem não é a covardia. O contrário da coragem é a esquiva. Quando me esquivo da dor, sou condenado ao esquecimento: esqueço de mim, das oportunidades e das vezes em que arrisquei e perdi. Somos de uma sociedade que premia os ganhadores e despreza os perdedores.
Quando eu escalo o melhor São Paulo Futebol Clube de todos os tempos, não lembro dos jogadores que perderam. Lembro dos times campeões. O Hall da Fama é para os ganhadores. Os perdedores não recebem o perdão. O que eu lamento dizer é que a ausência de erro é incompatível com a vida.
Construímos nossa trajetória na vida com muitos, muitos erros. E muitas e dolorosas perdas. Porque amar significa, muitas vezes, perder. É isso que Clementine fala, exasperada, para Joel: se você me amar, e eu vou, necessariamente, te decepcionar. E vou me decepcionar com você. E Joel responde: Ok.
Toda a coragem que precisamos na vida está nesse Ok. Porque é o Ok para o amor e a perda. A perda e o amor.
(*) – É médico, com mestrado em psiquiatria pela USP, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”.