É um momento ‘onde’ só a acusação tem vez e tem voz
* J. B. Oliveira
A Folha de São Paulo de domingo, 5 de novembro de 2017, dá notícia do comunicado de um grupo de advogados, em boa parte com clientes investigados na Lava Jato, que diz, a certa altura: “Reagir aos abusos da Lava Jato é uma coisa que nos une. Mas não é só isso. Nós queremos a garantia de nossa profissão. É um momento onde só a acusação tem vez e tem voz”.
(“Advogados querem entidade contra ‘abusos’ da Lava Jato” – Poder A7).
Embora seja advogado e tenha também formação em Política e Estratégia, não vou adentrar o mérito político ou jurídico da questão. Há pessoas muito mais competentes, mais conhecedoras do assunto e mais preparadas cuidando disso. Fico apenas na seara gramatical. Mais especificamente no parágrafo final: “É um momento ONDE só a acusação tem vez e tem voz”…
Acontece que, dentro dos cânones da gramática portuguesa, esse onde está mal aplicado.
Onde é, em princípio, advérbio de lugar. Mas pode ser também pronome relativo. Isso se dá quando ele se desdobra em no qual, na qual, nos quais, nas quais, como nos exemplos: “O bairro onde (no qual) resido é muito arborizado”. “Fortaleza, cidade onde (na qual) nasceu José de Alencar, tem belas praias onde (nas quais) se pode divertir muito”. “Ilíada e Odisseia são dois importantes trabalhos literários atribuídos a Homero ONDE (nos quais) está relatada a epopeia da Guerra de Troia”.
E então que entra o detalhe: a palavra onde só é corretamente aplicada quando se referir a locais físicos, a algo de consistência material, tangível. Nos exemplos acima, bairro, Fortaleza, praias e Ilíada e Odisseia são elementos concretos. Nas circunstâncias em que isso não ocorra, a boa prática gramatical recomenda usar a forma em que. Logo, no texto em comento – como costumam dizer os colegas juristas – a construção frásica correta seria “É um momento EM QUE só a acusação tem vez e tem voz”!
Aproveitando a chance, é oportuno tecer considerações sobre as formas ONDE e AONDE, que muitas pessoas julgam ser equivalentes ou sinônimas e as usam indistintamente. Afinal, quando usar uma forma e quando usar outra?
A resposta é simples, e demanda apenas um pouco de observação.
AONDE nada mais é do que ONDE com um “A” na frente. Esse “A” é uma preposição, que aqui tem o sentido de PARA.
Em consequência, AONDE quer dizer PARA ONDE, isto é, traz a ideia de movimento, de deslocamento: “AONDE (para onde) vão seus pensamentos, meu jovem?” “Se você tem liberdade plena, você vai AONDE (para onde) quiser”. “AONDE (para onde) os políticos estão levando o nosso Brasil?” “AONDE (para onde) foram os valores éticos e morais de nossa sociedade?” AONDE (para onde) iremos nas férias de fim de ano?
Portanto, em caso de dúvida, basta verificar se cabe a preposição PARA.
ONDE, por sua vez, é empregado em relação a um lugar físico e quando não está presente a ideia de movimento. “Vivo na mesma cidade ONDE nasci, ainda no século passado”. “O mausoléu ONDE estão os corpos dos heróis de 1932 fica no Parque do Ibirapuera, em São Paulo”. (Em outra construção, a frase poderia ser: “Os mausoléus AONDE (para onde) foram levados os corpos dos heróis de 1932 fica no Parque do Ibirapuera, em São Paulo”.
Resumo da ópera: em caso de dúvida, verifique se a preposição PARA é admissível antes de ONDE!
Para fechar, volto à palavra usada neste texto, no segundo parágrafo: o verbo ADENTRAR. Tenho-o visto acompanhado da preposição EM, ou da combinação NO, NA, em frases mais ou menos assim: “O professor adentrou na sala de aula depois dos alunos”. “O vento frio adentrou em nosso quarto” etc.
A questão é que ADENTRAR é uma palavra parassintética, fenômeno que ocorre quando entram simultaneamente um prefixo e um sufixo na formação do vocábulo. No caso presente, temos: a + dentro + ar. E esse “a” é uma preposição, equivalente a “para”. O sentido, portanto, é PARA DENTRO. Logo, não há cabimento para uma nova preposição. Embora haja certa divergência entre os gramáticos, o bom senso sugere que as formas gramaticais corretas são: “O professor adentrou a sala depois dos alunos” e “O vento frio adentrou nosso quarto”.
Simples assim!
*J. B. Oliveira, consultor de empresas, é advogado, jornalista, professor e escritor.
É membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e da Academia Cristã de Letras.
www.jboliveira.com.br – [email protected]