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Uma triste figura

em Artigos
quinta-feira, 14 de abril de 2016

Amadeu Garrido de Paula (*)

A presidente pode ser condenada com base em dúvidas? Indagou a rabulice, mais uma vez, em tom professoral.

O direito, se tido como ciência, não tem laboratórios para comprovar suas descobertas, como a física e a biologia. Vale-se do passado, do incrível direito romano, cujas expressões o orientam até hoje. Deturpá-las, sem mudança para melhor, é negar o direito, é injuriá-lo.

José Eduardo Martins Cardozo, há anos, quando presidente da Câmara Municipal de São Paulo, atentou contra a fonética da expressão “pas de nullité san grief”. Usou-a, em sessão televisionada, como se fosse anglo-saxônica, quando é de origem celta ou gaulesa, merecendo imediata reprovação de um velho advogado, defensor de um acusado.

Em sua manifestação unilateral sobre o parecer do relator da Comissão de Impeachment, equivocou-se, para supor o menos, entre dois momentos do processo penal: na sentença o juiz deve considerar o brocardo “in dubio pro reo”, ao examinar os fatos, mas não no recebimento da denúncia, de que se trata de meros indícios (dúvidas) de autoria e materialidade, suficiente para iniciar a ação penal. A presidente pode ser condenada com base em dúvidas? Indagou a rabulice, mais uma vez, em tom professoral.

O primeiro compromisso que um cientista deve ter é com a consistência, a substância de suas afirmativas. O cantor, o artista, o poeta, o literato do imaginário, pode dar-se à leveza do pensamento, que muitas vezes pode nos conduzir a planícies do prazer. Não assim o cientista. Toda sua beleza está em sua seriedade.

O advogado no júri, muitas vezes, se entrega a essas impurezas. Não vai longe. Falta-lhe rigor. O ministro Advogado Geral da União, que, ao defender pessoalmente a presidente Dilma, incorreu numa inversão de deveres institucionais, tolerada por grandes juristas, num momento atípico e preocupante da política e do direito brasileiro, não se debruçou, não refletiu detidamente sobre a defesa. O importante era impressionar, com os argumentos que lhe ocorreram. “Pode a presidente da República ser condenada, com base em dúvidas”? Segundo o ilustre jurista, era disso que se tratava.

O jogo de palavras pode ter lugar na Praça da Sé, entre camelôs. No plano da descrição do pensamento rigoroso, é uma tragédia. Nele não há lugar para espertezas. Tentar consagrar inverdades para todo um povo, que o acompanhava em rede nacional de rádio e televisão, deve ter deflagrado em seu autor um sentimento de morte. Ou não, se foi fruto de uma sagrada ignorância. Fernando Pessoa pontuou que “Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são mais absurdos…”

Um advogado que manipula conceitos não dorme em paz. Sabe que os deuses da sapiência um dia o punirão. É menos deprimente, no processo, tentar negar fatos evidentes. Não falamos de interpretações controvertidas, de exegeses aceitáveis, mas de deformações de princípios elementares. É o que se tem, quando diz que a certeza é necessária ao recebimento de denúncia.

Não é novidade a manipulação de fatos e conceitos pelo lulopetismo. Essa falta de compromisso com a verdade é o legado que esse populismo que nos sufoca deixa às próximas gerações.

No campo do direito, a peroração, grandiloquente e falsa, é repugnante.

(*) – Jurista com visão crítica sobre política, assuntos internacionais e temas da atualidade. É autor do livro “Universo Invisível”.