Barry Wolfe (*)
Por falta de melhor imaginação começo pelo lugar comum mais manjado entre médicos, gestores e outros atores do mercado de saúde – remédio só é remédio quando na dose certa.
De menos, é inócuo e em excesso, veneno. Mesmo batida, a expressão tem todo o sentido de forma ampla e particularmente em um aspecto do ambiente de negócios formado por hospitais, clínicas, indústrias farmacêuticas e agentes públicos. Esse aspecto singular é a dependência em relação ao big player do mercado, o governo em suas esferas federal, estadual e municipal e diversas instâncias compradoras e distribuidoras de medicamentos e de serviços.
O destaque naturalmente é o SUS. O Brasil, a exemplo da Inglaterra e Canadá, conta com um sistema público universal e gratuito de saúde. Isso é ótimo, e não se trata aqui de criticar o SUS – muito ao contrário. Mas o fato é que ao somar Sistema Único de Saúde às demais esferas governamentais compradoras de serviços e medicamentos se chega a uma concentração que dá um fantástico poder de barganha ao setor público.
A questão sempre presente, porém, é: como o poder público usa essa capacidade de negociação? Estudos recentes, e outros nem tanto, mostram que por motivos vários os governos barganham mal. Instituições privadas muitas vezes adquirem medicamentos por preços menores que as públicas, embora estas últimas os comprem em volumes extremamente maiores. Os números são sempre gigantes – só o ministério da Saúde vem gastando algo em torno de R$ 13 bilhões anuais em compras de remédios.
E não é só o gasto com medicamentos que se mostra notável – também o é a complexidade do setor. E é aí, no cruzamento de complexidade com gigantismo, que o terreno se torna interessante para quem não gosta de regras, digamos, civilizadas. Regras como, por exemplo, o velho “não roubarás”. De fato é tentador, para quem não se adapta a esse tipo de regulamento, olhar com cobiça para o setor no Brasil – o País tem o oitavo maior mercado farmacêutico do mundo e, em paralelo, um dos sistemas de impostos mais complicados do planeta, uma das mais kafkianas burocracias públicas e um sistema de licenciamento igualmente cheio de dificuldades, além de um varejo grande e também com regras bastante particulares.
Essa somatória é o paraíso para corrupção. Ao longo de meus quase 30 anos trabalhando com compliance e resolução de casos de corrupção, alguns dos maiores desafios que vivi foram no mercado de saúde – e justamente por conta de sua extrema complexidade. Corrupção e fraudes, nesse segmento, são infelizmente comuns. E, pior, também comum é que elas por vezes não sejam percebidas. Note-se, não falo em corrupção como sinônimo apenas de suborno em compras. Esse é um fator, com certeza, mas igualmente assustadora é a frequência com que as próprias empresas – fabricantes de fármacos ou equipamentos, hospitais e instituições de saúde suplementar – são fraudadas. E, insisto nesse ponto, muitas vezes sem perceber.
Um dos casos mais notáveis em que trabalhei envolvia centenas de pessoas em um esquema de falsificação e distribuição de medicamentos – e, apesar de sua magnitude, só foi percebido por um acaso. Uma questão de importância ímpar, quando se fala em corrupção, refere-se ao impacto da descoberta de desvios de conduta ética na opinião pública. Quanto custa para uma companhia ter sua imagem lançada na lama? Bem, não é pouco, e isso se sabe pelo terremoto que as descobertas da Lava Jato promovem no setor de construção.
Mas a verdade é que há muita diferença entre uma empreiteira e uma farmacêutica ou um hospital, para ficar em exemplos simples. A empreiteira de imagem queimada continua sendo empreiteira. Um fabricante de medicamentos, não: o que ele vende, além do fármaco, é confiança. A diferença entre um medicamento e um placebo, nesse sentido estrito, é a confiança depositada pelo mercado, pelo consumidor, e em última instância, na verdade garantida pelo laboratório. Sem isso, ele não existe, isto é, seus produtos se tornam farinha sob o ponto de vista do mercado consumidor.
Essa é uma questão à qual o mercado deve estar muito atento. O potencial de se encontrar ilícitos nesse segmento, e é disso que se trata no limite este artigo, é inquietantemente grande e vem crescendo tanto quanto o próprio mercado, que se expande a taxas de dois dígitos. Investir em políticas de governança e em medidas preventivas, que observem e neutralizem eventuais pontos desguarnecidos das cadeias produtiva e administrativa, é hoje tão importante para as companhias do mercado de saúde quanto, para um cidadão comum, usar regularmente seu protetor solar.
(*) – É pós-graduado em Direito Econômico pela Yale Law School, mestre em Direito Internacional por Cambridge e diretor da Wolfe Associates, consultoria em compliance preventiva, avaliação de riscos e investigação de fraudes corporativas (www.wolfe.com.br).