Sérgio Mauro (*)
Os governantes que ocupam o cargo legitimamente conquistado não governam em função de números e estatísticas, pois antes de se preocuparem com tabelas e gráficos procuram o bem-estar da população e, sobretudo, dos que mais se encontram indefesos diante de qualquer tipo de catástrofe natural, provocada exclusivamente pela ação humana ou causada conjuntamente por forças naturais e humanas.
Evidentemente, índices como os do PIB ou do desemprego espelham a situação em que vive a população do país, mas toda ação política deve visar primordialmente a amparar e proteger os que são vítimas de um sistema sócio-político criador de injustiças e de injustiçados. Ora, em meio a uma pandemia, manda o bom senso de quem ainda possui um pingo de respeito pelo ser humano que se proteja o grupo de pessoas com saúde fragilizada, quer pela idade avançada, quer por terem um histórico de baixa imunidade.
Para se compreender com lucidez e serenidade qualquer forma de catástrofe natural, seja provocada por intempéries, seja provocada por viroses ou outras formas de doenças com alto grau de propagação, deveríamos sempre recorrer não apenas aos médicos e demais agentes de saúde, mas sobretudo aos grandes pensadores, escritores ou filósofos, que refletiram profundamente sobre a condição humana.
Que não se tome esta minha reflexão como menosprezo pelo conhecimento científico ou pelo trabalho árduo dos médicos que enfrentam a pandemia, mas tão somente como uma demonstração de inconformismo diante dos que me despejaram nos últimos tempos volumes de informações sobre como este novo vírus se propaga sem nunca me explicarem o porquê da existência deste e de outros seres microscópicos que dizimaram e continuam dizimando milhões de seres humanos.
Tendo de recorrer a escritores, por uma questão de formação intelectual e familiar, e para homenagear um dos países mais atingidos pela atual pandemia, decidi basear minhas reflexões em dois grandes italianos do século XIX: Leopardi e Manzoni. Giacomo Leopardi (1798-1837), materialista e ateu, gênio precoce que enfrentou o provincianismo da cidadezinha em que nasceu, nas obras da maturidade concebeu a natureza, isto é, as forças vitais que criaram o universo e todos os seres vivos, como a principal inimiga, uma espécie de “madrasta”, para usar uma palavra recorrente na sua poesia, uma entidade que abandonou os seres humanos à própria sorte, demonstrando uma indiferença cruel.
Na visão deste grande poeta, não contente com a enorme maldade de abandonar os filhos à própria sorte, a natureza dotou os humanos de uma razão que os leva a perguntas que nunca terão respostas conclusivas (por que existem os vírus?). Alessandro Manzoni (1785-1873) nasceu em Milão, justamente na região italiana mais atingida pela pandemia, e foi um dos maiores escritores italianos do século XIX, mais conhecido pela sua obra-prima, I Promessi Sposi (Os noivos, no Brasil), escrito entre 1825-1827, romance fundamental no panorama do Romantismo na Itália.
Em meio a tantas peripécias de dois humildes camponeses que não podem se casar por causa do prepotente Don Rodrigo, senhor feudal espanhol, o narrador em terceira pessoa encontra espaço notável para a descrição de uma peste bubônica que assolou a Lombardia no século XVII, época em que se passa a trama do romance. Conforme o relato do narrador, a peste não faz distinção entre jovens e velhos, fortes ou fracos, pobres ou ricos. Em vários episódios se descreve o desespero da população que desejava encontrar os “culpados” pela ação destruidora da epidemia, descarregando a própria ira e inconformismo em inocentes que evidentemente não possuíam relação com o contágio desenfreado.
Manzoni, católico de inabalada fé, costura a trama de modo que a Providência divina seja o fio condutor do desenvolvimento dos quadros que compõem a complexa estrutura da obra. Em Leopardi, como afirmamos, o ser humano é vítima da “mãe-madrasta” natureza, e não há esperança em Deus. Em Manzoni, porém, apesar do questionamento e da quase “revolta” do narrador com o sofrimento humano, há resignação com os desígnios divinos que, às vezes, podem nos parecer incompreensíveis. Leopardi, sobretudo na famosa poesia “La Ginestra” (“A Giesta”), crê na solidariedade entre seres humanos conscientes que não mais culpariam seus semelhantes pelas desventuras provocadas pelas forças naturais criadoras (e destruidoras).
Manzoni, por sua vez, conclama a humanidade para a leitura correta dos desígnios divinos que podem até nos parecer cruéis ou incompreensíveis, mas que possuem uma razão própria que não se esgota na existência humana sobre a Terra, provisória e instável. Com as ideias destes gênios mencionados, “optando” ou não por um dos dois, minha reação diante de um evento da dimensão desta epidemia torna-se mais lúcida e me afasta das explicações simplórias, tanto das que menosprezam ou ignoram a gravidade da doença, como dos que nela enxergam o final dos tempos.
Prefiro apegar-me ao poder “moderador” que a pandemia está exercendo em países como a Itália. De fato, parece que a pandemia pacificou temporariamente a luta fratricida entre facções opostas que caracterizou boa parte da história italiana e ao mesmo tempo despertou certo patriotismo que se encontrava bastante acanhado, ou restrito apenas a manifestações esportivas. A quarentena forçada está levando também à revalorização da família e das pessoas idosas, que antes disso eram lembradas quase sempre apenas nos projetos de reforma da previdência.
No Brasil, país singular, o poder moderador da pandemia ainda não surtiu efeitos. As facções opostas continuam trocando acusações, ignorando completamente tanto as ideias de Leopardi como de Manzoni. O único efeito visível na política limita-se à inusitada aliança entre Dória e Lula, visando somente a combater o mesmo adversário político.
Infelizmente, a conscientização desejada por Leopardi ainda não ocorreu, não só no Brasil como em nenhum lugar do mundo. Sendo assim, terminada a epidemia, não acredito que a lição do poeta terá alguma eficácia. Inicialmente, talvez, certos cuidados e certas precauções no convívio cotidiano serão mantidos, mas depois tudo cairá no esquecimento. Isto porque, e assim finalmente concluo, citando o poeta americano T.S Eliot: os seres humanos “não suportam realidade demais”.
(*) – É professor aposentado de literatura italiana da UNESP/ Araraquara