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“O pior cego é o que não quer ver”

em Colunistas, J. B. Oliveira
segunda-feira, 27 de novembro de 2017

“O pior cego é o que não quer ver”

                                                                                                                                                     J. B. Oliveira

Esta é mais uma entre tantas outras expressões que se vai repetindo vida afora sem se ater ao seu sentido, à sua origem ou sequer ao seu significado.

 

Cada vez que algo está mais do que evidente para todo mundo e alguém se recusa a ver, mesmo o fato estando “na cara”, lá vem o chavão “O pior cego é o que não quer ver”… 

Isso, aliás, pode se aplicar nas telenovelas em relação a todo “mocinho” ou “mocinha” da trama urdida pelo novelista. As mazelas e perfídias praticadas pelos vilões são tão meridianamente claras que só os “bonzinhos bobocas e babacas” não veem! Às vezes – melhor dizendo, quase sempre – a coisa é tão escrachada que até ofende a inteligência dos menos sábios dos espectadores de novelas (que, a bem da verdade, já não são tão sábios assim…).

 

Mas, no caso presente, de onde vem e a que vem essa conhecida e curiosa frase?

A bem da verdade, o que se imagina é que todo cego quer ver. Afinal, segundo informa o Instituto Thea de Optometria Comportamental Internacional, “o sistema visual aporta 80% da informação sensorial. O processamento da informação visual é um aspecto-chave para o entendimento do mundo”. Isso significa que, sem a visão, perde-se enorme parte da capacidade de percepção do entorno do mundo! O mesmo instituto vai além, afirmando: “A percepção visual serve para identificar, classificar, organizar, armazenar e lembrar a informação apresentada visualmente”.

 

Pois bem, a nossa frase tem por base uma história real. (Aqui não posso deixar de comentar a repetidíssima e horrorosíssima expressão, vista em muitos livros e filmes, “este livro – ou filme – é baseado em fatos reais”!

Basta uma reflexão rudimentar para perceber a aberração: se é fato, é obrigatoriamente real, porque se não fosse real, não seria fato, e sim boato…).

Retomando nossa narrativa: o fato ocorreu em meados do século XVII, mais precisamente no ano de 1647, na cidade de Nimes, na França. Ali, o doutor Vincent de Paul D’Argent realizou a primeira cirurgia de transplante de córnea de que se tem notícia, em um aldeão de nome Angel. A operação foi um sucesso. Só que desagradou a quem mais deveria ter agradado: o paciente! Angel se sentiu horrorizado com o que viu. Disse que o mundo que imaginava era muito melhor. Absolutamente inconformado, pediu que lhe arrancassem os olhos, porque não queria ver nada daquilo. O inusitado caso de tão estranha exigência acabou indo parar no tribunal em Paris e no Vaticano – uma vez que a igreja, naquela época, tinha grande poder decisório. O pedido de Angel, porém, teve ganho de causa, seus olhos foram retirados e ele passou para a história como “o cego que não queria ver”!

 

No presente, pelo menos em nosso país, muitos cegos não veem não porque não eles queiram, mas porque outras pessoas não querem – ou não permitem – que eles vejam!

Isso ocorre quando a família de uma pessoa que faleceu não concorda com a doação de seus órgãos, entre eles a córnea! Se esse impedimento não ocorresse, e pessoas solidárias e humanitárias dessem autorização para que se procedesse à cessão dos olhos dos que se foram em benefício dos que aqui permanecem, certamente haveria muito mais ex-cegos passando a desfrutar visualmente das belezas deste mundo multiforme e multicolorido ao seu redor!

Um exemplar clube de serviços, o Lions, vem desenvolvendo intensa atividade nesse sentido, procurando motivar pessoas a colaborar, através do Banco de Olhos, com seus irmãos deficientes visuais.

 

Não se pense, porém, que a cegueira física impeça a atividade dos que querem agir. Há, uma instituição notável chamada ADEVA – Associação de Deficientes Visuais e Amigos, que fica na rua São Samuel 174, na Vila Mariana. Seu ativo presidente Markiano Charan Filho, conta que, por ter nascido de 7 meses e ter precisado ficar na incubadora, o excesso de oxigênio a que se viu exposto ocasionou-lhe a cegueira. “Mas minha infância”, conta ele, “foi como a de outras crianças, e fiz muita arte”.

Há muitos anos, ele foi meu aluno de Oratória e, no encerramento do curso, proferiu um maravilhoso discurso intitulado “A ausência na presença”, em que dizia que a pior ausência dos pais em relação aos filhos não é a falta de presença física, mas a da atenção, do interesse, mesmo estando perto!

Markiano, que é o orgulhoso pai da Júlia, estudou na Escola Técnica Federal, tendo sido o primeiro aluno deficiente visual. É formado em Letras (língua e literatura inglesa) pela PUC São Paulo, e um exemplo de dedicação ao trabalho e ao desenvolvimento sociocultural! É um cego que vê, muito além dos horizontes físicos da visão!

*J. B. Oliveira, consultor de empresas, é advogado, jornalista, professor e escritor.

É membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e da Academia Cristã de Letras.

www.jboliveira.com.br – [email protected]


One comment on ““O pior cego é o que não quer ver”
    Gabriel

    , a nossa frase tem por base uma história real….
    Só que não, no século 17, sem anestesia, antibióticos, quando as bactérias estavam sendo descobertas, era obviamente impossível um transplante de córnea. Psc: The first cornea transplant was performed in 1905 by Eduard Zirm (Olomouc Eye Clinic, now Czech Republic), making it one of the first types of transplant surgery successfully performed. Another pioneer of the operation was Ramon Castroviejo. Russian eye surgeon Vladimir Filatov’s attempts at transplanting cornea started with the first try in 1912 and were continued, gradually improving until on 6 May 1931 he successfully grafted a patient using corneal tissue from a deceased person

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