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Aqui e agora, entre o cômico, o onírico e a eternidade

em Especial
quinta-feira, 07 de julho de 2016
Aqui temporiario

Aqui e agora, entre o cômico, o onírico e a eternidade

“Na eternidade cabe todo mundo, não apenas eu, um velho senhor que vive em uma instituição da cidade. Na eternidade sou esperado e serei acolhido, assim como você”. Esta é uma interpretação possível da frase dita pelo senhor Fausto, morador de uma Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI) de Indaiatuba, à dupla de palhaços que o visitava

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Patrícia Lauretti/Jornal da Unicamp

A frase “na eternidade cabe lá todo mundo” acabou sendo escolhida para batizar a dissertação de mestrado em Antropologia Social da atriz palhaça Ana Teresa Costa Figueiredo, a Ana Piu, uma portuguesa com bastante experiência na arte da “palhaçaria”, que veio morar em Campinas com as filhas e com o objetivo de estudar na Unicamp e montar um grupo na região de Campinas e São Paulo que se especialize nesse tipo de visitação a idosos.

Durante nove anos, Ana fez parte da Operação Nariz Vermelho, uma organização de atores que atua em hospitais, semelhante ao Doutores da Alegria. Era a Xotôra Ninonete Xarope, “palhaça hospitalar” que um dia, junto com sua dupla, conseguiu tirar da apatia, pelo menos naquele momento da visita, uma senhora que já não falava havia muitos meses, desde que dera entrada no hospital. “Começamos a cantar uma música ‘mãe querida, mãe querida’ e ela abriu os olhos, começou a cantar também e a sorrir”, diz impressionada até hoje com o que pode um palhaço. “O que caracteriza o trabalho do palhaço é ser um transformador de momentos”.

Em Campinas, Ana tentou fazer um levantamento de grupos de palhaços que trabalhassem com idosos, mas teve muita dificuldade. Encontrou um único grupo na região, o Gandaiá, de Indaiatuba, que acompanhou para a dissertação. Mais tarde conheceu ainda o Teatro do Sopro, uma dupla do Rio de Janeiro formada a partir de um trabalho que já era feito pelo ator canadense Olivier Terreault em seu país, juntamente com a atriz Flavia Marco. A pesquisa descreve as visitas do Grupo Gandaiá a uma instituição da cidade, o Lar de Velhos & Espaço Dia Emmanuel, e do Teatro do Sopro a três ILPIs no Rio de Janeiro, contando um pouco da história dos atores, dos idosos e da instituição.

“O palhaço não tem nem passado nem futuro, vive o aqui e o agora, que é um pouco a lógica da criança e uma necessidade para o idoso, que é a de se conectar com o presente. Com os idosos o trabalho acaba sendo um pouco mais complexo porque muitas vezes o artista vira um confidente. Daí que entre os palhaços existe uma contradição, porque se ele vai atuar como um assistente social ou como um voluntário, não precisaria levar a sua arte”, pondera. Muitas vezes, de acordo com Ana, a relação do palhaço com o idoso passa pela conversa e por gestos de afeto. “O jogo lúdico com o idoso pode acontecer espontaneamente, mas de um modo geral o palhaço necessita de uma aproximação mais pessoal para estabelecer empatia e cumplicidade”, escreve.

Aqui 2 temporiarioA pesquisadora compartilha das observações do ator palhaço Olivier Terreault, do Teatro do Sopro, que divide o palhaço em três principais eixos quando intervindo com idosos: o palhaço relacional, o palhaço artístico e o palhaço terapêutico. “O palhaço relacional é o primeiro que surge nessa relação de aproximação. É visível a necessidade de alguns idosos em falarem de si e de contarem histórias do seu presente próximo, assim como do seu passado distante”. O palhaço artístico sobe à cena com um roteiro, ou seja, é aquele que vai até o local fazer uma apresentação, procurando estabelecer uma relação lúdica “na esfera do onírico e do cômico”.

Já o palhaço terapêutico é o efeito que este surte no idoso. “Este último aspecto é específico do trabalho do Teatro do Sopro, que assume a característica terapêutica com base num conhecimento mais detalhado do idoso com demência, fruto duma pesquisa e diálogo com gerontólogos, psicólogos e psiquiatras”. O grupo Gandaiá tem mais o perfil do palhaço relacional, sem prescindir dos efeitos terapêuticos que consequentemente possam vir a existir. Outro aspecto do trabalho do grupo é o trânsito que os atores fazem durante a visita, entre seus palhaços e eles próprios, quando saem do papel de personagem para algum tipo de observação.

“Por exemplo, uma atriz, chamada Kamila faz a personagem de palhaça Tatá. Ela escuta as queixas de dor de dona Rosa. Tatá elogia a roupa de dona Rosa. Esta sorri e segura nas mãos da palhaça. Continua falando que não tem tido fome. Kamila sai da personagem da palhaça Tatá e fala para a dona Rosa que esta tem de comer para não ficar doente. Dona Rosa diz que só espera morrer. Kamila volta a ser a palhaça Tatá e fala docemente, brincando, que se ela morrer não poderá dar o prazer a seus olhos de visitar uma senhora tão chique de vestidos chiques. Será uma palhaça menos chique”, descreve na dissertação.

“Senhor Fausto diz que as suas pernas já não são as mesmas, mas que sempre que pode caminha pelos corredores”. A dupla de palhaços sugere uma corrida para ver quem chega primeiro ao bebedouro. “Senhor Fausto responde com humor que nem vale a pena fazer essa corrida, pois ele vai ganhar dos palhaços”. Os palhaços brincam de correr no mesmo lugar, afastando-se do senhor Fausto e, fazendo uma voz distante, falam que, mesmo parado, Fausto é veloz e tem boas pernas. O idoso sorri e comenta: “Estes meninos têm um coração grande! Até sorrio por dentro com as suas bobagens!”.

Uma das auxiliares da instituição pede a ajuda dos palhaços para levar uma senhora, dona Maria, que está em uma cadeira de rodas até a sala de convívio. Os atores brincam e disputam pela condução da cadeira, até tirarem a sorte. A palhaça Tatá diz para dona Maria que ela agora tem dois motoristas, um luxo. A idosa responde que seria bom sinal não ter nenhum. “Mas, agora que tem, aproveite! Vamos parar no posto para colocar combustível”, e param junto a um bebedouro, oferecendo um copo com água a Maria.

Na Sociedade Beneficente das Damas Israelitas do Rio de Janeiro, o senhor Josué afirma que guarda uma pedra trazida do Muro das Lamentações em Jerusalém. De idade já bem avançada ele abre a gaveta e procura, mas não encontra a pedra. Mesmo que não fosse de verdade os palhaços lidam com aquilo brincando. De repente o idoso encontra a pedra. “Os palhaços dizem: Uau! É de verdade! Eles mantêm o jogo. O senhor estava orgulhoso e muito grato. Este impacto não é mensurável”, afirma Ana Piu.

Os palhaços que visitam as instituições ainda enfrentam o desafio de não infantilizar o idoso, o que impediria uma relação empática. Os artistas do Teatro do Sopro, por exemplo, vestem personagens de época, galãs de cinema, dançarinos de tango e, dessa forma, segundo Ana, aproximam-se ainda mais de uma abordagem antropológica, que interessa à pesquisadora. “Para Olivier e Flavia Marco, os palhaços colocam-se no lugar de vulnerabilidade como quem necessita emocionalmente do idoso; fazendo o idoso se sentir útil e invertendo os papeis de verticalidade em que eventualmente é o idoso que necessita do cuidador”, complementa.

A identificação, palavra-chave da relação entre o palhaço e a criança doente, ou o idoso que vive em uma instituição, acontece na vulnerabilidade. “O palhaço não é o vencedor, ele brinca com a vulnerabilidade para ‘aligeirar’ o momento, tornar mais leve. O foco do artista está no que é positivo, saudável, o que é são numa pessoa, não nas suas dores e mesmo assim, sem menosprezar suas tristezas”.