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Novas regras do rotativo do cartão de crédito: reflexões e desafios

em Destaques
quarta-feira, 06 de março de 2024

Marilyn Hahn (*)

Entrou em vigor no dia 3 de janeiro último a regulação do Conselho Monetário Nacional (CVM) que prevê novas regras para a cobrança de crédito rotativo de cartões. Esse movimento é aquele oferecido de forma quase automática quando o consumidor não realiza o pagamento total da fatura até a data de vencimento, fazendo com que o valor não pago, seja parcial ou total, transforme-se em empréstimo.

A decisão limita a cobrança em até 100% do total da dívida. Por exemplo: se o usuário tem cerca de mil reais em dívidas, que entrou no rotativo, o banco poderá cobrar, no máximo, outros mil reais em juros e encargos. Esse tipo de produto é de alto risco para a instituição financeira, já que não possui nem uma garantia e, consequentemente, é mais caro para o cliente.

Segundo dados do Banco Central, o custo médio do crédito rotativo no Brasil chegou a atingir 455% no segundo semestre de 2023. A nova regra faz parte de uma agenda atrelada ao Programa Desenrola Brasil, que visa à renegociação de dívidas. Desde que foi instituído, cerca de 6 milhões de brasileiros conseguiram tirar o nome do cadastro negativo. Além disso, aproximadamente 151 bilhões em dívidas foram negociadas com uma taxa de desconto de até 83%.

A expectativa do Senado é que essas ações possam ajudar as famílias a reequilibrarem suas finanças e começarem a ter uma relação mais saudável e consciente com o dinheiro, evitando o superendividamento e as extensões infinitas de ciclos de passivos. O Brasil reúne um povo culturalmente endividado: a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor de novembro de 2023 mostra que 87% dos brasileiros possuem dívidas no cartão de crédito e, desse total, quase 50% estão com atraso há mais de 90 dias.

O perfil das dívidas de cartão nos bancos tem se mostrado como uma extensão do orçamento das famílias; a grande maioria é composta de compras de supermercado (66%) e de remédios e tratamentos médicos (41%), o que remete ao ponto de que a população está contratando o crédito mais caro do mercado para compras de bens essenciais, gerando um ciclo vicioso bastante ruim para a economia.

Ciente de que a condição ceteris paribus – conceito da economia para explicar diferentes modelos, considerando como inalterados outros fatores que possam influenciar – existe apenas nas teorias econômicas, é quase impossível prever a real efetividade da nova regra no curto prazo. Muitos economistas acreditam que esse movimento não deve reduzir o endividamento das famílias se não for somado a uma contínua redução da taxa de juros.

Além disso, o principal fator que deveria prover melhoras nos indicadores seria a diminuição da taxa de desemprego no país, que tem apresentado progresso no último trimestre, chegando a 7,7%, menor taxa desde 2015. O problema é que essa melhora vem sendo puxada por estados como São Paulo e não está disseminada em todo o país: a região Nordeste continua com a maior taxa de desocupação e informalidade.

Outro ponto de atenção é que inevitavelmente haverá redução na oferta de crédito, principalmente para a população de baixa renda, que representa maior risco para as instituições financeiras. Atualmente, 63% do mercado ainda está concentrado nos grandes bancos: Itaú, Bradesco, Caixa, Banco do Brasil e Santander.

Não só os gigantes podem apresentar uma diminuição nesse apetite, mas também a medida poderia frear a entrada de agentes fornecedores de crédito no mercado, como por exemplo, novas fintechs, SCDs etc, além de afetar bancos digitais especializados na modalidade, como o Nubank e C6. Segundo o Bacen, entre as 63 instituições financeiras que operam com cartões de crédito no país, antes da regra, apenas nove tinham uma taxa de juros inferior ao limite de 100% proposto.

O instrumento de crédito via cartão é caro para os emissores de um modo geral e o perfil das dívidas dos consumidores pode fazer com que as instituições se movimentem para diversificar a oferta por meio de outros produtos de crédito, ou tomar a decisão de reduzir a oferta, mirando num público mais específico. Como bem dizia o sociólogo Betinho: “Um país não muda pela sua economia, sua política e nem mesmo sua ciência; muda, sim, pela sua cultura”.

Se a mudança na regra não traz necessariamente transformações estruturais para a economia, ela consegue levantar de forma mais emergencial a bandeira da educação financeira. O Procon-SP prevê uma agenda com representantes do setor de crédito para dialogar sobre ações que possam gerar informações eficazes para o público, como por exemplo, a portabilidade de dívidas, as fases do seu relacionamento com as instituições e demais ações práticas que possam apoiar na gestão das despesas.

Esse movimento, porém, não pode ser pontual: a entrada da disciplina de educação financeira nas escolas, principalmente nas públicas, assim como a inserção da pauta durante a vida adulta, são essenciais. Hoje, o Brasil ocupa a 74ª posição no ranking global que avalia a alfabetização da população em educação financeira, ficando atrás de países considerados os mais pobres do mundo.

Além disso, é necessária maior coordenação desses programas com os principias agentes de fomento de crédito no mercado: os grandes bancos. Educação financeira é um tema complexo e deve entrar na jornada das instituições com os clientes, garantindo mais responsabilidade desses atores no momento da venda de produtos.

Ferramentas baseadas em inteligência artificial e os dados do open finance devem ainda apoiar essa engenharia financeira, mas há também um papel forte relacional que deve ser explorado.

(*) – É CRO e cofundadora do Bankly (https://www.bankly.com.br/).