Heródoto Barbeiro (*)
Oboteco do meu pai era o ponto de encontro dos pau d´águas, pinguços e outros adeptos da marvada pinga.
O chão ao lado balcão vivia molhado porque os mais fundamentalistas jogavam um pouquinho e diziam que “era para o santo.” E como bebiam! Bodinho, Isaías, Jacaré, Alemão e o Gino eram assíduos fregueses do bar incrustado na frente do quartel do exército no Parque Dom Pedro II, no centrão velho de São Paulo. Bebiam e contavam histórias.
Eu tinha uns dez anos e no final da tarde, depois de fazer a lição de casa, ia “ajudar” o meu pai no bar. Os bebuns eram pessoas alegres, simpáticas e contavam muitas proezas que me encantavam. Um deles, o Gino, era inconfundível com a sua boina de estilo italiano. Ele deveria ter mais de 70 anos, tinha saído da cadeia, mas falava francamente de suas atividades. O simpático velhinho atraia a atenção de todos com o relato dos roubos que fazia.
Jamais usava o termo assalto, gaba-se de nunca ter agredido quem quer que seja, era o bom ladrão como dizia a minha mãe. Eu ficava extasiado quando contava como pulava os muros das casas nobres com as “estrelas” e depois de 2 ou três pulos estava do outro lado. Eu o admirava como um herói, como era capaz de voar por cima dos muros e escapar da polícia. Nada o abalava nem mesmo a sirene de uma rádio patrulha, como era conhecido o carro da polícia, que, no final da tarde, passava correndo pela rua.
O melhor lugar para esconder joias, dizia o seu Gino, era na lata de lixo. Ele recomendava a todos que se fossem viajar deveriam deixar os pertences em um lugar que raramente um ladrão iria procurar. As histórias do seu Gino iam das prisões na Central de Polícia, no Pátio do Colégio, ao lado da casa da Marquesa de Santos, no centro velho, até os dias que amargou atrás das grades na penitenciária. Ele não se emenda, dizia o meu pai do outro lado do balcão.
As conversas misturavam com a pauta dos sindicalistas que saiam das reuniões de suas sedes e se juntavam no bar. Várias sedes de sindicatos era naquela região, e também o comitê municipal do Partidão. Vez por outra alguém trazia um jornal velho e mostrava manchetes e foto do ladrão mais famoso da cidade, Gino Meneghetti. O Seu Gino e isto corroborava as histórias que contava sobre suas atividades de se apropriar o que pertencia aos outros. Era mesmo um ladrão profissional.
Um dia mostraram um jornal em que o seu Gino era acusado de ter cometido um homicídio, que ele negava até as lágrimas. Um fato comprovado apenas nas reportagens escandalosas dos tabloides que eram vendidos na praça da Sé. Ele ias às lágrimas em sua própria defesa. Jamais machuquei a quem quer que seja, dizia entre uma e outra talagada. Eu acreditava no velhinho, a justiça não e por isso amargou anos no xilindró. Ainda assim era respeitado e dizia-se que ele se regenerara, ganharam uma banca de jornais e vivia honestamente.
Um dia um caminhão do choque da Força Pública, atual Policia Militar, parou na porta do bar do Barbeiro, como era conhecido o boteco. Os sindicalistas exaltados debatiam uma pauta comum, a deflagração de uma greve geral. Não me lembro se era para reivindicar aumento de salários, ou um protesto pelo “assassinato” de Getúlio Vargas, conhecido como pai dos pobres, opositor do capitalismo americano e favorável a uma revolução industrial com empresas estatais. Estas pertenciam ao povo, gritavam aos sindicalistas.
A assembleia sindical não programada foi suspensa com a entrada dos milicianos no bar. Vinham armados de cassetetes de borracha. Foi uma correria. Todos os que estavam do lado de fora do balcão tentaram escapar. Os meganhas, como eram carinhosamente chamados os integrantes da Força Pública, fecharam as saídas. Baixaram borrachadas e vários fregueses se machucaram.
Não era uma operação para prender o seu Gino, mas para dispersar o grupo de líderes sindicais que armavam uma greve geral na cidade. Escaparam da violência, meu pai, minha mãe, eu e… o Gino. Acho que não o reconheceram, afinal de grevista velhinho não tinha nada. Não foi por isso, mas meu pai fechou o bar e montou uma oficina mecânica no local.
Os bebuns sumiram e nunca mais vi o seu Gino. Encontrei-o agora nos quadrinhos do Oskar Rizzo, e no livro ‘Meu Velho Centro’, da editora Boitempo.
(*) – É âncora do Jornal da Record News o primeiro em multiplataforma ([email protected]).