Gaudêncio Torquato (*)
De onde parte essa onda de fake news, versões, simulações e dissimulações que se espraia pela paisagem no meio da epidemia?
Nunca se ouviu um disse me disse tão farto quanto este do repertório de invencionices que usa as redes sociais, gravações e vazamentos de conversas, edição de vídeos, envolvimento de policiais, de juízes e procuradores? Fragmentos do que se viu ouviu nos últimos dias: Bolsonaro tentando interferir no cotidiano da PF; uma desastrada reunião, em 22 de abril, farta de palavrões; hordas bolsonaristas agredindo jornalistas, portando faixas com dizeres desrespeitosos contra os Poderes Legislativos e Judiciário; pedidos de prisões para ministros do Supremo; ações policiais sob viés político, enfim, uma profusão de informações misturadas com falsidades.
Onde estará a verdade? Ou, para ser mais preciso: o que é verdade? Vamos à análise. O fingimento faz parte da nossa cultura, e se mostra forte nesses tempos de polarização, quando adversários se atracam nas redes sociais desfechando punhaladas recíprocas. O caráter nacional, como é sabido, é povoado de fingimento. Nosso folclore político, aliás, é recheado de historinhas que mostram a esperteza do raposismo que impregna a vida pública.
Um pouco de humor para exemplificar este fato no relato de Sebastião Nery: “José Maria Alkmin, a raposa mineira, mestre da arte política, chegava da Europa com cinco garrafas enroladas na pasta. A Alfândega quis saber o que era.
– Água milagrosa de Fátima.
– Mas tudo isso, doutor Alkmim?
– Sim, lá em Minas o pessoal acredita muito nos milagres da água de Fátima. Não dá para quem quer.
– O senhor pode desenrolar?
– Pois não, meu filho.
– Mas, deputado, isso é uísque.
– Ué, não é que já se deu o milagre?”
É típico da índole do nosso político este tipo de despiste. Mas a esperteza não se restringe aos atores políticos. Faz parte do cotidiano das pessoas. Os comportamentos na esfera política costumam infringir normas, coisa que herdamos do passado. A clonagem na nossa cultura chega, hoje, ao mais adiantado grau de sofisticação. Nos últimos tempos, mergulhamos em um oceano de meias verdades, mentiras e lorotas. Estamos diante da maior escalada de pistas falsas de nossa história. Imensa confusão invade as mentes. O fato é que a história da política é rica nas frentes da simulação e dissimulação.
O cardeal Mazarino, ministro de Luis XIII, ensina em seu Breviário dos Políticos: “age com os teus amigos como se devessem tornar inimigos; o centro vale mais do que os extremos; mantenha sempre alguma desconfiança em relação a cada pessoa; a opinião que fazem de ti não é a melhor do que a opinião que fazem dos outros; simula, dissimula, não confies em ninguém e fala bem de todo mundo. E cuidado. Pode ser que neste exato momento, haja alguém por perto te observando ou te escutando, alguém que não podes ver”.
A descrição cai bem no momento que atravessa o país. A falsidade campeia, na tentativa de esconder a verdade. Até parece que os “inventores de causos” que emergem nas redes sociais, aprenderam com Nicolau Eymerich, frade dominicano espanhol que, em 1376, escreveu no “Manual dos Inquisidores”: falar sem confessar: responder às perguntas de maneira ambígua; responder acrescentando uma condição; inverter a pergunta; fingir-se de surpreso; mudar as palavras da questão; deturpar o sentido das mensagens; auto justificar-se; fingir debilidade física; simular demência ou idiotice e até se dar ares de santidade.
Hoje, há muito demônio disfarçado de santo. E para deixar por instantes esse momento de angústia que passamos, na esteira de uma das maiores tragédias de nossa história, fecho o texto com outra historinha contada por Nery envolvendo o mesmo Alkmin.
“Um correligionário de Bocaiúva fica meio “lelé da cuca” e aparece, sem eira nem beira, no gabinete do ministro da Fazenda, ainda no Rio de Janeiro, onde lhe pede inusitada colaboração. – Dr. Zé Maria, eu quero ir à lua e preciso da ajuda do senhor, diz o visitante.
– Isto não é problema, diz Alkmin, dando asas à imaginação do conterrâneo. Dou-lhe o apoio de ministro e correligionário. Existe um pequeno e contornável problema, que é de definição, e só depende do amigo.
Alkmin continua: – Você sabe que há quatro luas: nova, crescente, minguante e cheia. Agora, compete a você escolher qual das luas o nobre amigo deseja visitar, pois o apoio está dado.
Diante de um atônito conterrâneo, o ministro levanta-se da poltrona, estende a mão para a despedida e afirma, olhando no fundo dos olhos do eleitor: – Me procure quando você definir”.
(*) – Jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato. Acesse o blog (www.observatoriopolitico.org).