O Brasil acaba de perder o certificado de país livre do sarampo. Depois de passar quase duas décadas registrando alguns poucos casos importados da doença, o país contabiliza neste ano 5,4 mil doentes e seis mortos
Ricardo Westin/Ag. Senado/Arquivo S
Uma das razões da volta do sarampo, segundo especialistas, é a desinformação dos pais, que têm caído em fake news que acusam a vacina de ser perigosa para a saúde dos filhos. Dos seis mortos, quatro eram bebês que não haviam sido vacinados.
O medo das vacinas não é novo no Brasil. É até mais antigo do que a célebre Revolta da Vacina, de 1904. O país viveu um drama sanitário do mesmo tipo no decorrer do século 19. A doença em questão era a varíola — hoje erradicada do mundo. Apesar de os governos de dom João VI, dom Pedro I e dom Pedro II terem oferecido a vacina gratuitamente aos súditos, muitos fugiam dos vacinadores, o que contribuía para que as epidemias de varíola fossem recorrentes e devastadoras.
Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que a baixa adesão às campanhas de vacinação foi um problema que atormentou os senadores do início ao fim do Império.
— Em Santa Catarina, têm morrido para cima de 2 mil pessoas — discursou em 1826 o senador João Rodrigues de Carvalho (CE), citando a província da qual fora presidente (governador). — Eu estabeleci ali a vacina, deixando-a encarregada a um cirurgião hábil, mas quase ninguém compareceu. Os povos estão no erro de que a vacina não faz efeito. Quando o interesse público não se identifica com o interesse particular, nada se consegue.
Por causa das bolhas cheias que se espalhavam pelo corpo do infectado, a doença era popularmente chamada de “bexigas”. Mesmo nos casos em que a varíola acabava não sendo letal, os “bexiguentos” sobreviventes pouco comemoravam. Depois de secar e cair, as bolhas costumavam deixar cicatrizes profundas que deformavam o rosto para sempre.
— As bexigas são um dos maiores flagelos que devastam a humanidade — afirmou, também em 1826, o senador Antônio Gonçalves Gomide (MG). — Na minha província, foram tantas as mortes, que o arraial da Passagem ficou reduzido à metade. Isso não pode ser senão por desleixo, ao menos depois de haver um específico [a vacina] tão seguro.
Os senadores Carvalho e Gomide trataram da varíola durante as discussões, no Plenário do Senado, de um projeto de lei que autorizaria o governo a remanejar verbas do Orçamento para a vacinação, de modo a “vulgarizar a prática em todo o Império”. Mais especificamente, o dinheiro custearia as gratificações dos médicos vacinadores. Os senadores e os deputados, entendendo que o problema era mesmo grave, aprovaram a liberação das verbas.
A vacina era uma grande novidade. Em 1796, na Inglaterra, o médico Edward Jenner observou que os camponeses que ordenhavam vacas infectadas e contraíam a varíola bovina — uma variação inofensiva da doença — por alguma razão passavam a sair ilesos dos surtos de varíola humana. Para verificar se não se tratava de mera coincidência, ele decidiu retirar o pus das bolhas localizadas nas mamas das vacas doentes e inoculá-lo em cobaias humanas. O experimento teve o resultado imaginado. Jenner, assim, comprovou o poder protetor do pus infectado com a varíola animal.
O médico inglês batizou o pus terapêutico de “vacina”, uma derivação da palavra latina vacca. Na época, bastava dizer “vacina”, sem especificar a doença. Por muito tempo, a varíola foi a única enfermidade contra a qual existiu imunização.
No entanto, parte da população brasileira, sem entender como a vacina funcionava, tinha pânico dessa novidade médica. Um dos medos era que a imunização, em vez de evitar, desencadeasse a varíola e levasse à morte. Reforçava esse temor o fato de o vacinado desenvolver uma bolha, ainda que superficial e inofensiva, no local da inoculação. Outro medo era que o pus de origem animal transmitisse doenças bovinas para as pessoas.
Há relatos de mães que escondiam os filhos debaixo da cama ao ouvir o vacinador bater na porta e até de famílias inteiras que fugiam do povoado quando a campanha de vacinação chegava. Inclusive entre os senadores se encontrava desinformação.
— Eu não sei se a medicina já decidiu esta importante questão: se a vacina prejudica a saúde futura dos meninos — disse o senador Visconde de Jequitinhonha (BA) num discurso em 1862.
— É uma questão decidida há muitos anos — respondeu, indignado, o senador Cruz Jobim (ES), que era médico e defensor ardoroso da vacina.
— Decidida em que sentido? — devolveu o Visconde de Jequitinhonha. — Li ainda outro dia dúvidas acerca disso.
Foi a deixa para que Cruz Jobim desse uma palestra aos colegas:
— Na opinião dos inimigos da vacina, ela dá ocasião ao desenvolvimento de muitas outras moléstias que aumentam a mortalidade dos povos. Semelhante opinião é gratuita e infundada. Nenhuma dúvida há de que o preservativo é de grande vantagem. Há 20 anos, tendo aparecido a bexiga em uma horda de selvagens no Canadá, mais de 20 mil morreram. Também tendo aparecido a bexiga em selvagens de algumas ilhas do Pacífico, quase todos vieram a sucumbir. Estamos muito longe de observar essas horrorosas cenas nos países onde a vacina está em prática atualmente.
O senador médico continuou:
— Para que caluniar a vacina com suposições falsas? Para que atribuir-lhe males que ela não produz? Pôr em dúvida a eficácia da descoberta de Jenner é destruir a confiança de tão útil preservativo e expor a vida de milhares de pessoas a um dos maiores flagelos, talvez o mais mortífero de quantos têm aparecido no mundo.
Não se pode dizer que o medo da população era de todo absurdo. Na época, a ciência era incapaz de explicar como a vacina protegia as pessoas. Desconheciam-se os vírus e o sistema imunológico. Não se sabia que, ao introduzir-se um vírus enfraquecido no organismo, a própria pessoa passava a produzir anticorpos contra a doença.
Edward Jenner fez sua descoberta a partir de meras observações empíricas. Na falta de uma explicação científica plausível, muitos médicos condenavam a imunização. Entre eles, estava o português Heliodoro Carneiro, que em 1808 publicou um livro repleto de ataques à vacina. A obra, lançada em Lisboa, ajudou a disseminar o medo na Colônia.
Além disso, espalhavam-se mentiras deliberadamente. Na vila de Paracatu (MG), em 1832, o anúncio de uma campanha de vacinação fez a população apedrejar a casa do presidente da Câmara Municipal (cargo hoje equivalente ao de prefeito) e quase linchá-lo. Essa pequena revolta da vacina estourou depois que bilhetes e folhetos anônimos começaram a circular na vila avisando que a verdadeira intenção do político era infectar e matar todo mundo. Mais tarde, descobriu-se que as notícias falsas haviam partido do juiz de Paracatu, que era inimigo declarado do presidente da Câmara Municipal.
Antes de se mudar para o Brasil, dom João VI fez seus filhos serem vacinados em público, justamente para dissipar o temor dos súditos portugueses e convencê-los de que era infundada a história de que a vacina provocava as bexigas. O príncipe regente se engajou porque conhecia bem a devastação da varíola. Ele havia perdido dois irmãos, um genro e um filho para a doença. Sua mulher, dona Carlota Joaquina, era uma sobrevivente e carregava as cicatrizes indeléveis no rosto — o que ajuda a explicar a fama de feia.
Por essa razão, em 1811, apenas três anos depois de transferir a sede do Império português para o Brasil, dom João VI criou a Junta de Instituição Vacínica da Corte, destinada a executar a imunização em massa no Rio de Janeiro e a enviar a vacina para as províncias. A nova repartição pública também importava de Londres o pus animal. O material não podia ser extraído das vacas brasileiras porque elas, ao contrário das inglesas, não sofriam da varíola bovina.
A historiadora e professora da Casa de Oswaldo Cruz (instituição ligada à Fundação Oswaldo Cruz) Maria Rachel Fróes da Fonseca explica que foi então que surgiu a primeira política pública de saúde destinada a proteger toda a população do Brasil:
— No fim da Colônia e durante o Império, enquanto os serviços de saúde e higiene pública ainda se encontravam muito precários, a vacinação antivariólica funcionava como um dos poucos recursos que apresentava alguma eficiência.
Edward Jenner havia ido ainda mais longe nas suas descobertas. Ele percebeu que a bolha benigna que se formava no braço da pessoa após a vacinação também continha o pus protetor contra a varíola. Assim, cada indivíduo vacinado naturalmente se tornava produtor da vacina. Oito dias depois da imunização, a pessoa tinha que se apresentar novamente ao vacinador, para que ele estourasse a sua bolha e inoculasse esse pus em outras pessoas. O processo se chamava vacinação braço a braço.
Foi braço a braço que a vacina contra a varíola chegou ao Brasil pela primeira vez. Em 1804, o Marquês de Barbacena (que mais tarde se tornaria senador) mandou para Lisboa sete escravos meninos acompanhados de um médico, que aprenderia na capital portuguesa a técnica da vacinação. Apenas uma das crianças foi vacinada em Lisboa. Durante a longa viagem de volta, em navio, o médico passou o pus vacínico de um escravo para outro a cada oito dias. Assim que o navio aportou em Salvador, o Marquês de Barbacena foi a primeira pessoa a ser imunizada no território brasileiro.
O historiador Fillipe dos Santos Portugal, autor de um estudo sobre a introdução da vacina em Portugal e no Brasil, diz que, ao contrário do Marquês de Barbacena, a elite do Império resistia a receber o pus dos escravos:
— Quando publicavam anúncios convocando para a vacinação, as autoridades pediam que os senhores dessem banho nos escravos antes de levá-los ao vacinador. Mesmo assim, os brancos, quando tinham que se vacinar, evitavam o serviço público e recorriam a médicos particulares.