Livro retrata o teatro de resistência de Sami Feder
Sobrevivente do Holocausto, diretor polonês resistiu ao terror nazista através das artes cênicas
Integrantes da Companhia Kazet Theater, do DP Camp Bergen-Belsen. Sami Feder, ao centro com gorro, e ao seu lado direito, Sonia Boczkowska. Fotógrafo não identificado. Alemanha, 1945. Acervo: Bergen-Belsen Memorial.
Claudia Costa/Jornal da USP
“A palavra e o gesto eram ainda o que os nazistas não teriam como aniquilar”, escreveu o diretor de teatro Sami Feder (1906-2000) em um de seus diários, registrados em centenas de cadernos, muitos deles enterrados ou escondidos na época do Holocausto. “Sami Feder é um exemplo único de força espiritual, dirigindo teatro durante o Holocausto. Ele não era famoso antes da guerra, ao contrário de Kurt Gerron ou Ehrlich Max, Schwenk Karel ou Ullmann Viktor, Kotzenelson Yitzhak ou Arnshtam Mark – estrelas culturais do pré-guerra da Europa que foram impiedosamente dizimados por nada, a não ser por seu judaísmo.
Sami Feder tinha apenas 29 anos de idade, em 1939, quando começou a sua jornada de luta espiritual através de 12 campos de trabalho e campos de extermínio”, escreveu a pesquisadora russa Zlata Zaretsky, num artigo publicado na internet. Esse artigo originou uma extensa e minuciosa pesquisa de Leslie Kirchhausen Marko, filha de uma sobrevivente do Holocausto.
Cena da peça Der Goel (O Messias), de Emil Bernhard. Fotografia de Sami Feder, entre 1945 e 1947. Acervo: Bergen-Belsen Memorial – Foto: Extraída do livro Teatro de Sami Feder.
Resultado de sua tese de doutorado, defendida em 2016 na FFLCH/USP, o livro Teatro de Sami Feder – Espaço Poético de Resistência nos Tempos do Holocausto (1933-1950) – que acaba de ser lançado pela Editora Humanitas – reconstitui a trajetória do diretor de teatro judeu-polonês que atuou no movimento de resistência artística e emocional durante o período em que o nazifascismo dominou grande parte da Europa (1933-1945).
A análise do livro ainda se estende para o período imediatamente após a liberação do campo de concentração de Bergen-Belsen, onde o diretor esteve nos últimos dias antes da libertação e onde permaneceu por cinco anos, mesmo com o final da Segunda Guerra, vivendo no campo de refugiados Deslocated People Camp of Bergen Belsen. Segundo a autora, nesse local o seu teatro foi institucionalizado e foi criada a companhia Kazet Theater. Ali, “a reabilitação e recuperação da dignidade humana tornou-se uma urgência frente ao desenraizamento e ao trauma vividos durante a guerra”.
Para Leslie, imaginar o fenômeno teatral durante o Holocausto talvez fosse inconcebível. Como afirmou Sami Feder, em palavras reproduzidas no livro, “não tínhamos a mínima condição necessária. Aí reside nossa grande força. Não tínhamos literalmente nada: não tínhamos papel, lápis, nada para anotar. Tínhamos coração e sentimento. O teatro como espaço de resistência acolheu e deu moldura a atores e espectadores em um pacto construído entre a realidade oculta com o gesto, a palavra e o silêncio”, escreve Leslie.
“Muitas vezes, o silêncio da pausa e a mímica representaram o lamento e o ruído do acontecimento real sofrido. Em palcos improvisados ou clandestinos, decorando textos proibidos, desenhando partituras recuperadas da memória dos companheiros, usando cortinas e outros objetos para confeccionar indumentárias e cenografias, a cultura ídiche foi preservada num ato heroico em que parte da alma do povo judeu, que vinha sendo exterminado, conseguiu rebelar-se.”
Sami Feder, nascido em 5 de dezembro de 1906, em Zawiercie, na Polônia, emigrou para Frankfurt no final da década de 1910. Ali frequentou uma escola de artes cênicas, engajou-se nos círculos dos imigrantes poloneses, tornou-se sionista, jornalista, escritor e idichista, como conta a professora Maria Luiza Tucci Carneiro, do Departamento de História da FFLCH, que assina o prefácio da obra. Mas, segundo ela, foi em Berlim, centro cultural, político e artístico da Alemanha, que ele se entregou ao teatro, aprendendo a encenar com mestres como Erwin Piscator, Alexeu Granowsky e Zvi Friedland.
Sami Feder e Sonia Boczkowska em 1946, Deslocated People Camp of Bergen Belsen. Acervo Museu do Holocausto Yad Vashem (Israel) – Foto: Extraída do livro Teatro de Sami Feder.
“Tudo transcorria bem até o momento em que o jovem Feder teve seu nome inscrito numa ‘lista negra’ preparada pelos nazistas, que o classificaram como ‘judeu e apátrida da esquerda política’. A partir desse incidente registrado em 1933, Feder passou a viver no inferno”, relata. Depois de passar por vários campos de concentração, conseguiu sair vivo de Bergen-Belsen. A professora acrescenta que, em meio a esse cenário de desolação e reconstrução da vida, Feder se mobilizou para levar arte e oferecer esperança aos seus novos espectadores.
Sami Feder, como poucos conseguiram fazer, dirigiu grupos teatrais de resistência anti-hitlerista, compostos por artistas/prisioneiros judeus, em guetos, campos de concentração, de trabalho e de extermínio durante a dominação nazista na Alemanha e no Leste Europeu. No seu artigo, a pesquisadora russa Zlata Zaretsky sublinha a importância do estudo do teatro do Holocausto como parte da história do teatro judaico e do teatro mundial, identificando Sami Feder como um artista pouco estudado e de significado relevante.
“Encontrei poucas referências sobre o diretor e alguns registros sobre teatro ídiche em geral durante o Holocausto”, conta Leslie, que se encontrou com Zlata em 2012, na cidade de Ma’ale Adummim, nas proximidades de Jerusalém. Nesse encontro, a pesquisadora russa mostrou a Leslie tudo o que tinha em mãos: parte do arquivo pessoal de Sami Feder, doado a ela pela segunda esposa do diretor, Dora Feder, depois do falecimento dele, em 2000 (a primeira mulher foi Sonia Lizaron, membro-chave de seu grupo teatral), fotografias, documentos e recortes de jornal da época sobre Sami Feder e o Kazet Theater, escritos em hebraico, ídiche, inglês e espanhol.
Cartaz da peça teatral Hitleriada, de Sami Feder (1934), uma sátira ao Führer. Acervo: Bergen-Belsen Memorial – Foto: Extraída do livro Teatro de Sami Feder.
Como afirma o jornalista Arie Olewski, membro da diretoria da Associação de Sobreviventes de Bergen-Belsen (Herzliya, 2018), em depoimento publicado em Teatro de Sami Feder: “Era como se ela (Leslie) tivesse sido enviada pelo céu para criar um final apropriado para a história inacabada de Sami Feder e Sonia Lizaron. Uma história, de milhões, de duas pessoas cujas vidas foram entrelaçadas nos tempos e espaços do Holocausto. Sami e Sonia foram bons amigos dos meus pais; todos eram sobreviventes de Auschwitz e de outros conhecidos campos de trabalho forçado, e posteriormente proeminentes figuras do campo de deslocados de Bergen-Belsen. Eles foram os iniciadores da arte cênica no campo”.