Há 100 anos, Epitacio se elegeu presidente sem estar no Brasil
Há 100 anos, os brasileiros votaram numa eleição presidencial das mais esdrúxulas da sua história
Palácio Conde dos Arcos, sede do Senado, abrigou evento que oficializou candidatura de Epitacio. Foto: Memória Viva
Ricardo Westin/Agência Senado/Arquivo S
Num caso sem paralelo, os eleitores que foram às urnas em 13 de abril de 1919 deram vitória a um candidato que havia passado todo o período eleitoral em Paris. Foi Epitacio Pessôa, que não voltou ao Brasil nem sequer para fazer campanha ou votar.
Epitacio só chegou ao Rio de Janeiro em julho, já presidente eleito, a bordo de um transatlântico. Faltava uma semana para a posse.
Ele não estava na Europa a passeio. Epitacio era o chefe da delegação brasileira enviada à Conferência de Paz de Paris, na qual os países vitoriosos na Primeira Guerra Mundial acertaram os termos de paz com os derrotados.
A curiosa eleição de abril de 1919 foi fora de época. Em janeiro, o Brasil havia sido sacudido pela morte do presidente Rodrigues Alves, por gripe espanhola, sem chegar a assumir o segundo mandato. Desde novembro de 1918, quando ele adoeceu, o Brasil vinha sendo governado interinamente pelo vice, Delfim Moreira.
Os brasileiros, então, foram chamados de novo às urnas. Quando a inesperada sucessão foi aberta, Epitacio já estava fora do Brasil. Uma carta dos caciques políticos logo chegou ao Plaza, o hotel cinco estrelas onde o brasileiro estava hospedado em Paris, avisando que ele se preparasse, pois seria o candidato do establishment.
“É um honra tão insigne quanto inesperada”, respondeu Epitacio num telegrama destinado ao vice-presidente do Senado, Antônio Azeredo (MT). “A espontaneidade da designação, feita em minha ausência e sem nenhuma sugestão da minha parte, me convence de que a própria República é que reclama meus serviços no posto supremo do seu governo.”
O Senado foi um ator político bastante presente nessa eleição. Primeiro, porque os dois candidatos eram senadores: Epitacio, representante da Paraíba, derrotou o colega Ruy Barbosa, da Bahia. Segundo, porque a Casa foi o palco da convenção nacional que apresentou Epitacio à população como o candidato oficial da elite política. Terceiro, porque a apuração final coube ao Senado e à Câmara dos Deputados, que tinham poder para anular os votos que considerassem fraudulentos.
Hoje, em seu acervo histórico, o Arquivo do Senado guarda uma série de documentos de 1919 que ajudam a explicar como um candidato se elegeu presidente estando no outro lado do Atlântico e sem nem sequer mover uma palha. Entre esses documentos, estão discursos de parlamentares.
O senador Francisco Sá (CE), um dos raros políticos que aderiram à candidatura oposicionista de Ruy Barbosa, chamou a eleição brasileira de “cena teatral”. Ele já sabia que Epitacio Pessôa ganharia sem dificuldade. Indignado, Sá discursou:
— Ruy Barbosa representa a reação contra os processos iliberais das escolhas feitas à revelia do povo, contra as combinações do predomínio regional e contra as ambições abrigadas no segredo dos conclaves oficiais.
Com poucas palavras, descreveu toda a engrenagem que movia a política da Primeira República (1889-1930).
Em boa parte do período, o grande poder não estava nas mãos do presidente, mas nas dos chefes políticos dos estados (em especial São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul). Os coronéis tinham tanta força, que quem de fato escolhia os presidentes do Brasil eram eles. Os ocupantes do Palácio do Catete, em retribuição, evitavam se intrometer nos mandos e desmandos dos feudos estaduais.
Conchavos
O senador Soares dos Santos (RS) defendeu a candidatura de Epitacio:
— O futuro presidente deve ser uma garantia para a estabilidade do regime vigente. Ninguém poderá negar o perigo que trariam as tentativas de reformas políticas na atualidade.
De forma indireta, Santos atacou os planos de Ruy Barbosa de reformar a Constituição para fortalecer o Supremo Tribunal Federal (STF). Para que o STF pudesse crescer, os estados, o presidente e o Congresso teriam que se enfraquecer — contrariando toda a lógica da Primeira República.
A escolha do presidente passava por três etapas. A primeira ocorria nos bastidores, onde os chefões políticos dos estados negociavam até chegarem a um nome de consenso. As negociações eram complicadas e podiam se estender por até dois anos.
Segundo uma pesquisa da historiadora Cláudia Viscardi, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), ao menos 40 medalhões participavam dos conchavos para a escolha dos presidentes. Entre eles, estavam ex-presidentes, ministros, senadores, deputados, governadores, integrantes do STF, militares e até donos de jornal.
Essa era a fase decisiva. As duas seguintes eram apenas jogos de cena que buscavam dar um verniz democrático à eleição. Na segunda etapa, o candidato escolhido era levado a uma convenção nacional, na qual votavam senadores e deputados. Em fevereiro de 1919, reunidos no Senado, os convencionais aclamaram, claro, Epitacio Pessôa.
Requerimento do senador Raymundo Miranda (AL) para que o Senado telegrafe a Epitacio Pessôa uma mensagem de boas-vindas ao Brasil e crie uma comissão para recepcioná-lo no porto do Rio de Janeiro. Foto: Arquivo do Senado
Na terceira e última etapa, os eleitores votavam. No dia da eleição, para que o presidenciável do establishment saísse vitorioso nas urnas, os coronéis colocavam em ação as fraudes e os votos de cabresto.
Por essa razão, os políticos que disputavam a Presidência da República não precisavam fazer corpo a corpo com os eleitores nem discursar em comícios. A vitória viria de qualquer maneira. Foi por isso que Epitacio nem pisou no Brasil no período eleitoral.
Na convenção de 1919, o deputado Flores da Cunha (RS) tentou justificar a inexistência de campanhas eleitorais:
— Não é no bulício das ruas nem na turbulência dos comícios que se pondera sobre assuntos de tanta relevância.
— É no palácio dos kaisers e dos czares — retrucou um parlamentar provocador que o taquígrafo do Senado não conseguiu identificar.
Epitacio Pessôa, na realidade, não era o nome preferido das oligarquias estaduais. Os paulistas desejavam que o novo presidente fosse o governador de São Paulo. Os mineiros, que fosse o governador de Minas Gerais. Um estado não queria ceder ao outro.
— É um mito a ideia de que São Paulo e Minas Gerais viveram em paz dividindo o poder. Foi uma relação cheia de desconfianças e conflitos — explica Cláudia Viscardi, da UFJF.
Em 1919, como o tempo para as negociações em torno do candidato oficial era muito curto, os dois estados acharam mais prudente optar logo por alguém de um estado pequeno e neutro. Em apenas um mês, longe dos holofotes, o martelo foi batido a favor do senador paraibano.
Na eleição de 100 anos atrás, Epitacio ficou com 71% dos votos. Ruy, com 29%. Dias depois de o vencedor chegar de Paris, o Senado e a Câmara o homenagearam com um baile de gala no Clube dos Diários, no Rio de Janeiro, que virou a madrugada.