“Viola bem ponteada/ nos braços do violeiro/ morena bem penteada/ com uma flor no cabelo/ quem passa, pára e admira/ gasta um minuto de esgueiro/ quase perde o compromisso/ mas o que ganha com isso/ não se compra com dinheiro” (Viola Encarnada, moda de viola, Mathias Zae e Yuri Garfunkel).
Claudia Costa/Jornal da USP
Inspirada em temas de mais de 80 canções do repertório caipira, a revista ‘A Viola Encarnada: Moda de Viola em Quadrinhos’ será lançada neste sábado (9), às 16h, na Livraria do Espaço. Projeto de histórias em quadrinhos baseado na viola caipira, a HQ parte das origens rurais, do trabalho no campo e com o gado, das pescarias, do próprio ofício do violeiro que toca nas festas e nas fazendas.
Trata da história do Chico Mineiro, que é assassinado pelo amigo, e a partir dessa toada vão surgindo outras modas – como Boiadeiro Punho de Aço, As três Cuiabanas, Boi Soberano, A Morte do Carreiro e Moça Boiadeira –, que esclarecem esse mistério”, conta o desenhista, músico e educador Yuri Garfunkel, criador do projeto que foi contemplado em 2018 pelo Programa de Ação Cultural, da Secretaria de Cultura do Estado.
Com introdução assinada pelo violeiro, compositor, arranjador, pesquisador e professor da USP Ivan Vilela, a revista é, em suas palavras, uma ideia muito original, de muita sensibilidade que vai atingir um público jovem que não conhece essa música. Para Vilela, “faz sentido trazer para o desenho uma música que tem uma narrativa tão imagética”. Garfunkel (também violeiro) já conhecia o repertório caipira, mas precisava de ajuda para contextualizar historicamente a trajetória da viola.
“Para saber de onde ela vem e para onde ela vai, eu precisava de um mestre, e nunca pensei em outra possibilidade a não ser Ivan Vilela”.
Garfunkel conta que foi buscar informações sobre a construção da viola, e foi assim que conheceu o luthier Luís Armando, que produziu a “viola encarnada”, modelo de todas as 172 páginas da HQ. Feita especialmente para o projeto, a “viola encarnada” – inicialmente chamada de A Viola Vermelha, pertencente a Florêncio (dupla de Raul Torres), um dos primeiros violeiros – ganhou outra cor, além de uma roseta redonda (na viola de Florêncio era uma estrela).
Além disso, ganhou um escudo preto como o da viola que Tonico, da dupla Tonico e Tinoco, traz nas mãos, em foto na capa do livro Música Caipira: da Roça ao Rodeio, de Rosa Nepomuceno. Assim foi criada A Viola Encarnada, que se tornou capa da HQ e que tem, como explica Garfunkel, “um duplo sentido, de encarnação e de uma viola encarnada em uma revista”.
A HQ é dividida em dez capítulos, assim como as dez cordas da viola caipira, recheada de ilustrações a lápis, giz de cera e aquarela. Sem diálogos, a obra conduz o leitor em uma viagem visual pelos sertões do Brasil, “testemunhando” – termo usado por Vilela – desde as origens da música caipira até sua chegada à cidade grande, no final do século 20.
Traz também no rodapé das páginas títulos das canções de referência. “Parte delas se refere a acontecimentos essenciais que se desdobram em algumas páginas, enquanto outras reforçam a narrativa com cenários e detalhes de quadros específicos”, explica Garfunkel.
Segundo o autor, “ao optar pelo silêncio, abrimos espaço para que a música caipira possa soar e ambientar cada imagem dessa história, que só se completa com a própria música, e um leitor-ouvinte”, informando ainda que as músicas estão disponíveis, na ordem em que aparecem na HQ, em uma playlist do Youtube, A Viola Encarnada.
Esse projeto surgiu a partir de duas paixões de Garfunkel, o desenho e a música. Influenciado pela família – seu pai também é flautista e compositor –, começou tocando flauta transversal, migrou para o violão até conhecer a viola, que acabou usando como instrumento em sua banda de rock instrumental Kaoll. Apesar de causar estranheza, a viola se adapta tanto às modas de viola quanto ao rock, descoberta que fez quando escutou o trabalho Moda do Rock, dos violeiros Ricardo Vignini e Zé Helder.
Mas foi em uma de suas fases musicais, como ele mesmo diz, que conheceu propriamente a moda de viola, através de uma coletânea de quatro discos de Tião Carreiro e outros parceiros. “São histórias marcantes e bem descritivas, das viagens de boiadeiros, dos desafios dos violeiros, e antes mesmo de entender qual composição era de quem e diferenciar uma moda da outra, já tinha uma história”, relata. O resultado, ele define como “quadrinhos instrumentais”.
A história da viola
Segundo Ivan Vilela, caipira é uma palavra muito antiga. “Nos anos 1500, a região onde hoje é a cidade de São Paulo já abrigava um povo diferente de suas matrizes europeias e indígenas, o caipira, fruto do encontro de portugueses com etnias indígenas presentes no litoral. O nome caipira vem do tupi caápir, ou aquele que corta o mato, que faz a monda (arranca o mato)”, escreve.
Já a viola, como Vilela afirma, surgiu em Portugal por volta dos anos 1400 e foi largamente utilizada pelos mais humildes, encontrando no Brasil um novo lar, primeiramente nas mãos dos caipiras paulistas e dos moradores de antigas cidades como Recife, Salvador e Rio de Janeiro, onde permaneceu como um dos principais instrumentos até metade dos anos 1800.
“O som da viola sempre soou Nordeste adentro desde que ela lá chegou, mas foi nas mãos dos caipiras que a viola ganhou voz quando começou a ser gravada em canções a partir de 1929”, informa, acrescentando que com o passar do tempo consolidou-se como um dos segmentos que mais vendeu discos no Brasil: a música caipira.
“E vejam que coisa incrível: depois de gravadas, essas músicas tornaram a história de gente humilde, de pequenos camponeses conhecida por todas as pessoas. A música caipira gravada inverteu uma constante onde a história registrada era sempre a da elite, dos reis, dos administradores e nunca a do povo simples”, ressalta. E pergunta: Como não nos lembrarmos da canção Asa Branca (de Luiz Gonzaga)? E das populações ribeirinhas da Amazônia que tanto narraram suas histórias em músicas locais?
“No momento que os caipiras registraram seus romances no disco e este foi difundido pelas rádios, suas vozes se amplificaram e suas histórias passaram a fazer parte na nossa história que, segundo o poeta Ferreira Gullar, não se desenrola só nos gabinetes presidenciais, mas também nas ruas e nos quintais”.
Mas Vilela lembra que embora tratemos a música caipira genericamente como moda-de-viola, ela é, na realidade, um guarda-chuva que abriga diferentes ritmos como o cururu, o cateretê, a guarânia, a polca paraguaia, a querumana, o batuque caipira, o samba rural, a congada, o lundu, a toada e a própria moda-de-viola.
“Todas cantando e contando histórias. O próprio cururu que surgiu como uma modalidade de desafio improvisado, quando entrou no disco manteve as carreiras, que são as rimas, mas transformou-se num romance, numa narrativa”, exemplifica. “Quem ainda não escutou um cururu como o Menino da Porteira ou um cateretê como A Moda da Mula Preta?