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Qualidade de vida para quem tem uma doença rara é possível

em Opinião
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Dirk Blom (*)

Ao falarmos sobre doenças raras, é natural associá-las a um grupo pequeno de pessoas.

De fato, se comparadas a outras enfermidades mais comuns, o número é realmente reduzido. Todavia, somadas, elas afetam cerca de 3,5 a 6% da população, o que equivale ao redor de 260 a 450 milhões de pessoas no mundo, segundo dados da European Journal of Human Genetics. Devido à complexidade dos casos, estima-se que para 95%2 delas ainda não tenha um tratamento medicamentoso disponível.

Entretanto, vários estudos clínicos com terapias inovadoras estão sendo desenvolvidos em diversos países, com a intenção de dar mais qualidade de vida a esses pacientes. Quando se trata de uma doença rara que pode ser agravada pela alimentação, como no caso da síndrome da quilomicronemia familiar (SQF), que afeta a produção de uma enzima chamada lipase lipoproteica, responsável pela metabolização da gordura no sangue, a necessidade de tratamento fica ainda mais evidente.

Em pessoas com essa condição, as taxas de triglicerídeos podem chegar a concentrações de 15.000 mg/dL ou mais, quando os níveis não deveriam passar de 150 mg/dL3. Entre os danos que esse excesso de gordura no sangue pode causar ao indivíduo, está, principalmente, a pancreatite aguda, que pode levar a óbito. A única terapia de longo prazo atual é a restrição da ingestão total de gordura para menos de 10 a 15% das calorias diárias (15 a 20g por dia), que não é sempre bem-sucedida na prevenção da pancreatite aguda.

Buscando tratamentos que proporcionem mais qualidade de vida às pessoas com SQF, conduzimos em 12 países, incluindo o Brasil, um estudo de fase 3, duplo-cego, randomizado, de 52 semanas, chamado Approach, para avaliar a segurança e a eficácia de um medicamento em 66 portadores da SQF — número grande se lembrarmos ser uma doença rara. Os pacientes foram designados aleatoriamente, em uma proporção de 1:1, para receber uma dose de 300 mg do medicamento, por via subcutânea, uma vez por semana, ou o placebo.

Os pacientes que receberam a terapia tiveram diminuições nos níveis médios de triglicérides de 77%. Durante o período de tratamento, três pacientes no grupo de placebo tiveram quatro episódios de pancreatite aguda, enquanto um paciente no grupo do medicamento investigacional teve um episódio, sendo 9 dias após receber a dose final. Este foi um ensaio difícil de conduzir.

Direcionado a uma doença muito rara, com um número de pacientes elegíveis relativamente pequeno e um protocolo do ensaio muito rigoroso, exigindo que os pacientes fizessem exames de sangue muito regularmente, cumprissem uma dieta rigorosa e ficassem por muitas horas nos locais do ensaio em algumas datas de visita para monitoramento de triglicerídeos pós-prandiais, após uma ingestão de gordura desafio.

Nem todos os pacientes mantiveram a medicação em longo prazo, mas a resposta lipídica (redução dos triglicerídeos) foi mantida naqueles que continuaram o tratamento. Se interrompido, seus lipídios lentamente voltariam à linha de base.
Apesar das dificuldades, é muito importante desenvolver medicamentos para doenças órfãs. E precisamos avançar nisso. Embora o número de pacientes afetados possa ser relativamente pequeno em cada uma, cumulativamente existe uma grande carga. Estima-se que exista cerca de 7 mil enfermidades raras no mundo.

Mas os desafios para os pacientes raros não terminam com a descoberta de novos tratamentos. Um dos principais problemas é o acesso posterior à terapia. Como esse setor é bastante pequeno, os custos de pesquisa e desenvolvimento são bastante altos, dificultando o acesso a novas terapias, mesmo que exista uma grande necessidade clínica ainda não atendida.

Idealmente, gostaria de ver parcerias internacionais entre a indústria farmacêutica e os governos para cofinanciar o desenvolvimento desses medicamentos e, em seguida, também fornecer os tratamentos a preços específicos para as distintas realidades do mundo – mais caros no mundo desenvolvido e um pouco menos caros no mundo em desenvolvimento. De todo modo, há esperança para o futuro.

Se tomarmos o exemplo da hipercolesterolemia familiar homozigótica, há 20 anos, havia somente um tratamento eficaz, a plasmaférese — um procedimento automatizado de separação do sangue e retirada do excesso de lipídios. Agora, temos vários medicamentos que são altamente eficazes e permitem que muitos pacientes descontinuem a plasmaférese e atinjam valores de colesterol normais ou próximos do normal.

Por tudo isso, precisamos avançar e buscar cada vez mais o desenvolvimento de estudos e pesquisas.

(*) -É chefe da divisão de Lipidologia da Universidade de Cape Town.