Ulisses Rodrigues (*)
Engana-se quem pensa que uma conta atrasada é um problema apenas do devedor e do seu credor.
Trata-se de um tema de interesse público e que diz respeito à sociedade como um todo. É essa a linha da Lei do Superendividamento. Publicada em julho de 2021, tem como objetivo proteger o consumidor das suas próprias dívidas e reintegrá-lo à sociedade. De forma um pouco mais indireta, evita também que a inadimplência promova um efeito cascata na economia.
Quando o consumidor não consegue pagar suas dívidas, as empresas não obtêm a receita esperada. Logo, não terão os recursos previstos para fazer novos investimentos ou para honrar seus próprios compromissos. Com isso, correm o risco de ficar elas mesmas inadimplentes, deixando de pagar os seus fornecedores ou — o que é bastante comum — os impostos.
Nesse caso, o Estado arrecada menos, colocando as já frágeis contas públicas em situação ainda mais delicada. Estamos falando de questões bastante concretas. Segundo pesquisa da CNC, em fevereiro, 27% dos endividados declararam ter contas em atraso, patamar mais alto em 12 anos.
Do outro lado do balcão, os números não são muito melhores. Em janeiro, seis milhões de empresas estavam inadimplentes, de acordo com dados da Serasa Experian. As micro e pequenas empresas lideram as estatísticas, com 5,4 milhões de negativados, alta de 0,45% em relação ao mesmo período do ano anterior.
Um dos pontos mais controversos da Lei do Superendividamento é a previsão do chamado “mínimo existencial”, ou seja, uma quantia mínima essencial que não pode ser tomada do devedor, de forma a permitir a sua sobrevivência. Esse ponto, que não é nada trivial, ainda precisa ser regulamentado pelo Executivo. Enquanto isso não ocorre, muitas questões seguem abertas.
Quais serão os critérios adotados para o mínimo existencial? Haveria um valor único, valendo para qualquer consumidor, independente da renda? Ou seria um percentual mínimo da renda do consumidor? Qual seria esse percentual? Haveria um teto para essa renda? Ainda não sabemos, e não existe nada pior para o ambiente de negócios do que a incerteza. Afinal, como se calcula risco se as regras não são conhecidas ou podem mudar a qualquer momento?
Nesses casos, o mercado tende a ficar mais conservador e a concessão de crédito, mais seletiva. Várias vozes já saíram em defesa de um equilíbrio entre proteção ao consumidor superendividado e previsibilidade e segurança jurídica. É certo que essas regras precisam ser elaboradas com muito cuidado. No entanto, queria deixar um pouco de lado essa discussão dos detalhes para pensar apenas no conceito do mínimo existencial.
A prosperidade tem esse dom maravilhoso de se multiplicar. O endividado não “é” um devedor, ele “está” devedor, ou seja, é uma fase pela qual aquela pessoa ou empresa está passando e que vai ter um fim. Quando isso ocorrer, aquele que estava endividado volta a ser consumidor.
Portanto, a prosperidade do devedor é também a da empresa para a qual ele deve e, em um efeito cascata inverso ao mencionado no começo deste artigo, a nossa prosperidade como país e sociedade. É fundamental, portanto, ajudar o endividado a encontrar caminhos para sair dessa situação da melhor maneira possível. Esse também parece ser o direcionamento da Lei do Superendividamento e, mais especificamente, da ideia do mínimo existencial.
É preciso, sim, elaborar bem as regras para esse ponto, mas, de forma geral, ajudar o devedor a se recompor e reintegrá-lo ao mercado traz benefícios para todos, e é a partir disso que devemos procurar soluções.
(*) – É CEO da Intrum Brasil (www.intrum.com.br).