167 views 6 mins

O comércio da fé

em Opinião
segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Gaudêncio Torquato (*)

Os evangélicos exercem forte influência sobre o pensamento nacional.

Trata-se de um dado que passa ao largo da análise política. Quando muito merecem a lembrança bíblica: “dai a Deus o que é de Deus, e a César o que é de César”. No mais das vezes, emerge o replicado dito constitucional sobre o Estado laico, que não deve se misturar à igreja, condição que separa as coisas da religião da esfera estatal.

Portanto, é claríssima a ideia de que a religião integra a vida privada não adotando o Estado brasileiro de religião oficial nem privilegiando seitas. Aos cidadãos, garante-se inteira liberdade de escolha de crenças, diferentemente dos tempos do absolutismo, quando monarcas se investiam do poder divino para justificar seus atos. Na prática, porém, a teoria parece dar voltas em torno de seus eixos.

Pois os credos evangélicos assumem declaradamente posicionamentos inerentes ao Estado, inclusive reivindicando poder material, seja por meio de domínio de feudos na administração pública, seja trabalhando abertamente pela indicação de ministros evangélicos para as Cortes, como ficou comprovado com a nomeação de um ministro “terrivelmente evangélico”, André Mendonça, para compor o quadro de 11 ministros da Suprema Corte.

Ora, esse fato, tão banalizado que deixou de ser algo extraordinário e, em tempos outros, condenado pela imensa maioria da comunidade social, torna-se coisa trivial, a ponto de vermos, hoje, correntes evangélicas postulando a nomeação de uns e queimando as chances de outros. A eleição para as Cortes da Justiça passa, hoje, pelo crivo de pastores famosos, alguns sem pejo de patrocinar abertamente perfis e grupos. O pastor Malafaia, como se sabe, é interlocutor permanente do presidente nessa matéria.

A continuar a tendência de imbricação entre as coisas de Deus e as de César, a barafunda tomará de conta da paisagem institucional. O IBGE calcula termos mais de 42,3 milhões de evangélicos no país (dados de 2010), representando, na época, 22,2 da população brasileira. No final de 2014, a projeção apontava que os protestantes seriam 29% da população. Em 2020, pesquisa Datafolha mostrou que os evangélicos já seriam 31% da população ou 65,4 milhões de pessoas.

O maior credo é o das Assembleias de Deus, cerca de 30% do total, seguido pelas Igrejas Batistas, Congregação Cristã no Brasil e Igreja Universal do Reino de Deus. Esta, aliás, tem vasta estrutura de comunicação, com seu apoio bem disputado pelos políticos. É preocupante o fato de que tais frentes religiosas usam o povo em sua peregrinação para dominar o Estado brasileiro, bastando ver como algumas delas usam o poder midiático para arrebanhar fiéis e manter os cofres cheios.

Pelas madrugadas, os cenários de catarse social eram comuns e hoje tais espetáculos, com sua liturgia centrada nos milagres que “curam” doentes, podem ser vistos até em horários noturnos, alguns bem cedo. A fé, nesse caso, em vez de remover montanhas, serve como pá para arrecadar montes de dinheiro que obreiros e assistentes recolhem em suas andanças pelos gigantescos espaços dos cultos.

As massas, tão perdidas nesses tempos de pandemia, não hesitam em pagar o “ingresso” para adentrar o reino dos Céus, E tome grana, o, agora facilmente captada por cartões de débito/crédito, e ainda por esse mecanismo criado pelo Banco Central, o PIX. Na África, a Igreja Universal luta para não ser banida de Angola, após ser investigada por desvio de dinheiro, discriminação e práticas contra a integridade de religiosos angolanos.

Até o bispo Marcelo Crivella não recebeu agrément para exercer as funções de embaixador na África do Sul, por suspeitas de que poderia ser uma alavanca para preservar em Angola a Igreja Universal. E o bispo Macedo faz périplo internacional com o intuito de esticar os braços de sua religião. O fato é que o evangelismo no Brasil assumiu uma feição política, puxando credos para a vala comum do oportunismo e do mercado da fé.

Os governantes, preocupados em manter boas relações com as Igrejas, por ver no eleitorado evangélico rebanhos eleitorais, deixa a situação correr solta. Por isso, Brasília e o entorno do Palácio do Planalto, antes um território frequentado exclusivamente por políticos e suas equipes, agora é uma passarela da fé.

As igrejas evangélicas, portanto, em vez de se constituírem em redutos sagrados para elevar as preces dos crentes ao Senhor da Criação, se assemelham a sucursais de grandes favores, muitos voltados para perpetuar o poder terreno de grupos jamais preocupados com a salvação das almas.

Tio Patinhas é uma inocente figura do passado.

(*) – É jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político Twitter@gaudtorquato. Acesse o blog (www.observatoriopolitico.org).