Gaudêncio Torquato (*)
O governo Lula e os seus 100 dias. O que mostrar? Um governo cumpridor de promessas de campanha? Dinheiro fácil, gastança sem limites, felicidade dando o ar da graça?
Ocorre que o mundo mudou, o Brasil não é mais aquele de 2003, o acesso das massas ao crédito precisa se enquadrar em parâmetros que regulam o uso do cofre, enquanto o embate sobre custo, gasto e investimento abre divergências, sob a “lição” de Luiz Inácio de que os livros de economia estão errados. Para ele, não dá para governar com a administração encabrestada, presa ao chamado “teto de gastos”.
O arremate vem pronto: na área social, as políticas devem ser entendidas como investimento e não como gasto. O caldeirão ferve. Os economistas apregoam que se não houver crescimento, o país vai para o beleléu. Caso isso ocorra, zero para os governantes. Que preferem ver o país abrindo as comportas da gastança do que andando para trás. O sucesso do atual governo dependerá do êxito econômico.
Esse é o dilema que aflige Lula. Nos seus mandatos anteriores, era visto como São Jorge lutando contra o dragão da maldade – inflação, juros altos, alimento caro, hospital sem equipamentos, miséria galopante. Ele mesmo estampava a imagem do maior exemplo da dinâmica social no Brasil, figurante que migrou da base da pirâmide para o altar mais elevado do poder.
Ele sabe que todo começo de governo é como o zigue-zague do caranguejo, que anda para frente, para os lados e para trás. Lula vai tentar fazer com que o caranguejo ande para a frente. O que poderá ocorrer, mais adiante, quiçá em agosto, quando se espera o início da queda dos juros, mantida em 13,75% pelo Banco Central, para desgosto do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e indignação do próprio presidente.
Até lá, o caranguejo vai andar de lado, forma de mostrar que se movimenta, mas não avança. O desafio que ameaça corroer a confiança na atual administração é encontrar a “linha fina”, como bem definiu o ministro Haddad, entre o que se pode e o que se deve gastar, levando-se em conta as demandas em setores sensíveis, como educação e saúde.
No caso do governo Lula, este desafio assume proporções monumentais, eis que o governante terá de sustentar a imagem de “pai dos pobres”, defensor das margens carentes, o mandatário mais próximo à base da pirâmide social. Como garantir a continuidade da imagem? O que vimos, até o momento, é a volta de Lula ao palanque, onde é mestre na arte da encenação.
Sob o prisma da linguagem, escancara-se a estratégia do mandatário em acalentar os corações de sua base, como se viu na fala rude em que atira um ácido “f…,” contra o ex-juiz e hoje senador Sérgio Moro. Teria sido indagado por um membro do Ministério Público, em visita periódica à sede da PF, em Curitiba, onde estava detido, se “tudo estava bem”. A resposta foi um “não”, ao que se seguiu o ferino complemento verbal.
Foi um toque para animar a fração que se alinha a seu vocabulário. Errou. Um governante pode, até, conservar a contrariedade, mas, na condição de mandatário-mor do país, haverá de se conter e se guiar pela liturgia do cargo. O país está dividido. E Lula sai da linha quando usa o baixo calão, comum na linguagem de seu antecessor. Descer do palanque se faz necessário para eliminar vestígios de vingança.
Outra frente a se cuidar com zelo diz respeito ao desmonte do arcabouço montado por gestões anteriores. O critério deve ser o da qualidade dos programas e a tecnicidade que os inspira. Urge descartar o que é inócuo, ruim, politiqueiro, e conservar as coisas boas. O Lula 3 está recompondo o Minha Casa, Minha Vida, Água para Todos, Bolsa Família e outros projetos bem avaliados.
A intenção é a de resgatar as marcas de sucesso. Mas não pode passar uma borracha em ações e programas eficazes de outras gestões. O rombo do Custo Brasil da descontinuidade é monumental. Por isso mesmo, a primeira coisa a ser feita deveria ser o levantamento acurado e objetivo de ações positivas e de projetos do passado. Continuidade no caminho do que é bom é medida do bom senso.
Há quadros de carreira preparados e qualificados na administração pública. Infelizmente, a politicalha e o caciquismo político acabam corroendo seus potenciais, pois, nos lugares mais importantes da administração, ingressam perfis despreparados, cujo maior compromisso é o de atender às demandas de seus patroci-nadores. Na esteira da improvisação na administração pública, planos estratégicos acabam cedendo vez às ações paroquiais.
Por isso mesmo, há uma dose de verdade quando se diz que falta à União e aos Estados um planejamento de longo prazo. Outra mazela é a ausência de controle das decisões. As ordens emanadas do topo nem sempre são cumpri-das ou são apenas parcialmente executadas.
O presidente da República ou mesmo o ministro, do alto de seus cargos, não têm condições de acompanhar a dinâmica e o cotidiano dos atos e afazeres. A propósito, Lula deu um pito nos ministros, ao exigir que todos os programas sejam acordados com a Casa Civil. A hora clama por bom senso.
(*) -É escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.