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Derrapadas autoritárias

em Opinião
segunda-feira, 26 de julho de 2021

Gaudêncio Torquato (*)

O ministro da Defesa, Braga Netto, fez um desmentido que não apagou a fogueira.

Disse que não disse o que o Estadão publicou: se não for aprovado o voto impresso não haverá eleição em 2022. O presidente da Câmara, a quem teria sido enviado o recado, também declarou que não ouviu isso de nenhum interlocutor. Mas as versões continuam ganhando espaço e repercussão pelo fato de o próprio presidente Bolsonaro ser o arauto principal da ideia.

Dia 8 de julho passado, chegou a sinalizar a não realização do pleito sem aprovação do voto impresso: “ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições”. O voto impresso, para ele, é garantia de limpeza. Ora, o voto eletrônico também é auditado. E até hoje não se apresentaram provas de fraudes, como tem repetido o capitão presidente. O que estaria por trás desse manifesto interesse por um tipo de voto que, na história eleitoral do país, foi um instrumento de perpetuação de corrupção?

Receio de derrota, sinalização para as bases? Ao fundo, remanesce a discussão sobre a militarização do governo. Nunca tantos militares foram convocados para integrar a linha de frente da máquina governamental. Nunca se viu tanto coronel entrar no roteiro de coisas mal contadas, como a que estamos vendo nas investigações da CPI da Covid 19. Não há como escapar à verdade: os militares da ativa e da reserva, às pencas, participam do governo Bolsonaro e dão a impressão de que apreciam muito suas rotinas diferentes.

Ocorre que a imagem das Forças Armadas está suja, a partir do envolvimento de militares em negociações improvisadas e descabidas. O general Eduardo Pazuello, ainda na ativa, foi jogado no lodo do pântano. E não adianta dizer que o militar de reserva no governo é a mesma coisa que um civil. Os valores que inspiram as Forças abrigam a lealdade, a disciplina, a hierarquia, a missão de servir à Pátria. Nos últimos tempos, a construção servir à Pátria se transformou em servir-se da Pátria.

A Constituição de 1988 reservou às Forças Armadas papel fundamental como instrumento de Defesa do Estado de Direito e das Instituições Democráticas (Título V). Tendo como lume a defesa da Pátria, a Carta Magna garante a existência e o funcionamento dos poderes constitucionais – Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário (art. 2º) – e, por suas ações, a defesa da lei e da ordem.

Às Forças não se atribuem prerrogativas de poder constitucional, sendo instituições nacionais permanentes e regulares a serviço do Estado. Aqui, instala-se o imbróglio. Confunde-se Estado com governo. Ademais, ninguém é dono da esfera militar, sendo oblíqua a ideia de considerar uma entidade como o Exército como propriedade de alguém (“o meu exército”).

A imagem das Forças Armadas passou boa temporada na órbita da sujeira, resultante do movimento militar de 64. Com a redemocratização, nos meados de 80, os militares voltaram aos quartéis e intensa profissionalização deu um novo sentido às Armadas. Que conseguiram resgatar prestígio, respeito e credibilidade.

Agora, com a ocupação massiva do território governamental e, sobretudo, com a interpenetração dos limites entre espaços do Estado e do governo, a politização assume proporções monumentais, deixando o país medroso e a mercê de correntes inclinadas a ressuscitar o autoritarismo.

Sinais de que as Forças Armadas querem o voto impresso a qualquer custo e o afastamento de Lula da disputa presidencial são vistos e ouvidos aqui e ali. As tensões, já altas, tendem a se acirrar. A todo momento, ouvem-se perorações sobre a nossa democracia e a garantia de que a CF é e será o lume de 2022, mas persistem dúvidas e receios. O TSE, por meio de seu presidente, ministro Luís Barroso, tem proclamado o absoluto cumprimento da letra constitucional. Mas, como se comportarão as Forças Armadas mais adiante?

Espera-se que atuem como garantia de defesa dos poderes constitucionais, jamais para dar suporte a iniciativas que atentem contra eles. O declive institucional na direção de um passado autoritário é um risco que o Brasil deve abolir de sua paisagem.

(*) – É jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político Twitter@gaudtorquato. Acesse o blog (www.observatoriopolitico.org).