Gaudêncio Torquato (*)
Perguntaram uma vez ao grande Demóstenes (384-322 a.C.), famoso pelo dom da oratória: “Qual a principal virtude do orador?”. Respondeu: “Ação”. Insistiram: “E depois?” Voltou a repetir: “Ação”.
Sabia ele que essa virtude, própria dos atores, era mais nobre que a eloquência. A razão? A ação é o motor da humanidade. Faço esse pequeno registro histórico para lembrar a promessa do presidente eleito, Lula da Silva: fazer um governo além do PT.
Será um desafio e tanto, sabedores que somos da índole do Partido dos Trabalhadores de encarnar os valores mais altos da política, a moral, a ética e as boas práticas, mesmo que sua história não tenha sido reta como uma régua. É tão forte a crença do PT em sua identidade de sigla vestida no manto sagrado das virtudes que o alfabeto petista é declamado de maneira quase automática por seus integrantes: “o governo do PT, nosso governo, o PT é isso, o PT não é aquilo”.
Eis, portanto, o imbróglio que aguarda o presidente Luiz Inácio: furar a bolha do petismo, puxando partidos de cores diferentes do vermelho para uma administração compartilhada, respeitando as visões de novos parceiros, compreendendo as recentes disposições como fator de garantia da governabilidade.
Em suma, aceitar que o partido não deve e não pode se considerar uma “igreja” de fiéis convictos, fechada ao ingresso de outros crentes. Nos últimos tempos, vimos o mundo avançando no processo civilizatório, instalando novos paradigmas, abrindo vertentes diferentes de poder, a partir da multiplicação de novos polos de influência, como os que se incrustam nas entidades intermediárias, cada vez mais fortes: sindicatos, associações, federações, movimentos.
O Brasil é um laboratório de organicidade social. Em todos os espaços do território, vemos as sementes da intermediação social a cargo de uma gigantesca teia de organizações não governamentais. Urge observar que Lula ganhou o pleito não necessariamente por uma votação atrelada à adesão ao partido, mas por imensa rejeição ao seu adversário, Jair Bolsonaro (PL).
Portanto, há contingentes não petistas que escolheram Lula pela crença de que deveriam dar o passaporte caseiro a quem constitui ameaça à democracia. Dito isso, assistimos com certa apreensão a disputa, ainda em forma embrionária, de grupos do PT que tentam navegar no transatlântico do governo de transição.
Nesse momento, já garantiram ingresso naquela embarcação 12 ex-ministros do PT, sinalizando uma expectativa explícita de grupos em voltar a dar o tom na orquestra do Planalto. Um afiado analista da política diz a este escriba que, a essa altura, a especulação imobiliária já impulsionou os aluguéis na capital federal em cerca de 50%.
Haja gente querendo voltar a se refugiar nas franjas do poder central.
Como se intui, a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffman, a ser elevada a um cargo de ministra, se depara com um rolo de pressões para abrigar quadros do partido. Ela ouviu do presidente Lula a disposição de querer fazer um “governo além do PT”. Já se ouvem protestos, mesmo à boca pequena, sobre o papel agregador e contemporizador do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB). Cabe a este ser uma espécie de “algodão entre vidros”, evitando dissensões e querelas públicas entre alas. Conseguirá?
Tudo vai depender da postura do novo dirigente. Lula é um dos mais experimentados perfis da administração pública, com lastro em dois mandatos no Executivo, um acurado observador dos tempos da ex-presidente Dilma e o maior líder popular do país das últimas décadas.
Porém, encontrará barreiras mais altas que as do passado. Terá de pacificar o país. Trazer paz e harmonia. Diminuir as tensões entre os Poderes. Responder aos desafios do desenvolvimento, com uma economia vigorosa e saudável. Acima do viés partidário-ideológico. Os três Poderes carecerão assumir os princípios constitucionais da independência, harmonia e autonomia. E respirar o ar das ruas.
O Judiciário há de retomar sua função de guardião da Constituição, sem interferir nas pautas do Legislativo. O Poder Legislativo, por sua vez, haverá de cuidar com equilíbrio de coisas sensíveis e vitais como o orçamento. E resgatar o papel das Medidas Provisórias, evitando que sejam carona para sediar temas estranhos à sua finalidade. Em suma, observar o princípio: cavalo comedor, cabresto curto. Pretendem os Poderes melhorar sua imagem perante a sociedade? Ação, Ação, Ação.
P.S. O presidente eleito, em discurso, nesta quinta no CCBB, em Brasília, prometeu fazer “um governo de diálogo”. E que o Brasil voltará à civilidade. Aplausos deste escriba às futuras Ações.
(*) – É jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político Twitter@gaudtorquato