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A privacidade previdenciária e a proteção contra práticas discriminatórias

em Opinião
terça-feira, 06 de outubro de 2020

Vinícius Pacheco Fluminhan (*)

  • Alô! Bom dia! O senhor gostaria de um empréstimo para aposentado?
  • Aposentado? Sim, e com vantagens especiais do nosso banco!
  • Mas eu nem sabia que estava aposentado… Basta me dizer o valor que eu aprovo o empréstimo agora.
  • Como você sabe meu telefone? Senhor, qual seria o valor do empréstimo?
  • Mas quem está falando?

O recebimento de ligações indesejadas para oferta de bens e serviços tornou-se comum. Às vezes temos a impressão de que nossos dados pessoais não nos pertencem. É como se o uso compartilhado deles sem a nossa autorização fosse algo “normal”. Não, não é. Por isso, o principal objetivo da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que entrou em vigor no dia 18 de setembro, é justamente promover o retorno à normalidade.

Por que a LGPD é tão importante? Por que os dados previdenciários merecem proteção diferenciada? Em que medida a nova lei protege os trabalhadores?

Vivemos em uma sociedade onde os dados cada vez mais valem dinheiro. Consequentemente, a empresa que reúne dados pessoais de clientes por conta de seus negócios possui um ativo de grande valor comercial. Ele não vale apenas como cadastro da clientela.

Ele também possui valor como banco de dados capaz de despertar interesse para outros negócios em outras empresas. Por isso, a LGPD veio reforçar o direito à privacidade, instituindo uma regra básica bastante óbvia: os dados privados pertencem aos seus titulares, sendo sua circulação possível apenas com autorização deles, ou ainda, em situações excepcionais sob supervisão da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, que será a agência reguladora da área.

No caso dos dados previdenciários, seu eventual uso indevido pode levar a consequências bem mais graves que a importunação dos bancos. Primeiramente, porque o acesso ao CPF dos segurados do INSS pode ser a porta de entrada para a utilização de tecnologias de análise preditiva, que podem resultar em novas ofertas indesejadas de bens e serviços baseadas em informações como endereço, gênero e faixa etária.

Em segundo lugar, porque o acesso a dados mais sensíveis da clientela previdenciária, como o histórico de benefícios recebidos, pode suscitar práticas discriminatórias no mercado de trabalho. Na linguagem comumente utilizada por recrutadores, os processos seletivos de empresas buscam candidatos que se encaixam em determinado perfil. Mas o que seria esse perfil nem sempre fica claro, dando assim margem a preferências subjetivas respaldadas por discriminações proibidas pela lei.

Por outro lado, as pesquisas sobre o mercado de trabalho feitas por instituições credenciadas, como o IPEA e o IBGE, apontam para a existência de vários tipos de discriminação (etária, funcional, gênero, racial etc). Em consequência, a circulação indevida de dados previdenciários pode fragilizar trabalhadores em processos seletivos.

Qual seria a atitude provável de um recrutador ao saber que o candidato possui histórico de vários afastamentos por auxílio-doença? Qual seria a probabilidade de contratação de um ex-aposentado por invalidez? Ou ainda de alguém que passou por processo de reabilitação profissional? Um candidato concorreria em condições de igualdade se o recrutador soubesse que seus dependentes receberam auxílio-reclusão por conta da sua prisão, mesmo que injusta?

Evidentemente, não se pode afirmar a priori que em todos esses casos haveria uma prática discriminatória. Mas sem dúvida a violação à privacidade abre um caminho facilitador para a discriminação. A Dataprev é a empresa pública responsável pela coleta, processamento e conservação de todos os dados previdenciários. Aparentemente, a política de privacidade adotada pelo INSS tem sido capaz de proteger os segurados.

No entanto, é preciso lembrar que a empresa foi incluída no Programa Nacional de Desestatização do governo federal, podendo tornar-se uma instituição privada interessada nesse valioso ativo representado pelo gigantesco banco de dados do sistema previdenciário brasileiro. Por isso, a LGPD chega em boa hora para recolocar o direito à privacidade em alto grau, como aliás sempre desejou a Constituição Federal (art. 5º, inciso X).

(*) – É advogado, mestre e doutor em Direito, e professor-pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie Campinas.