O mundo do trabalho nunca mais será o mesmo.
A avalanche provocada pela pandemia de Covid-19 levou uma parcela significativa dos trabalhadores para um lugar que é também mais um anglicismo: estamos muitos em “home office”, diluindo ainda mais as fronteiras de tempo, espaço e afetos entre vida profissional e vida pessoal, enquanto o desemprego bateu às portas de milhões de indivíduos, cujas projeções de um futuro próspero foram aniquiladas, especialmente entre os mais jovens, os mais pobres e os menos brancos.
A tragédia sociossanitária agravada por governos, que desmontam políticas públicas de proteção aos mais vulneráveis, reduz ainda mais as oportunidades de emprego formal nos próximos anos e mesmo décadas. Os desafios exigem uma aceleração de políticas de reintegração por parte de governos, instituições de ensino e corporações. O acesso às novas tecnologias pode ser um dos mais importantes fatores para produzir essa aceleração imperativa.
A reintegração social digital de crianças, jovens, trabalhadores e famílias com acesso à banda larga e aos serviços, no entanto, já faz um tenebroso contraste com a realidade vivida por massas sem acesso ou qualificação, criando um apartheid inédito na história do trabalho. O acesso às profissões com melhores remuneração e condições laborais já é disputado por um seleto grupo de pessoas que passaram a viver novas formas de ansiedade, estresse e depressão, assédio moral e violência doméstica.
A aceleração da reintegração social digital é no momento o único caminho para gerar novas oportunidades de trabalho e renda. O desafio é integrar um maior número de pessoas nesta nova economia, garantindo oportunidades de sobrevivência digna, que estarão cada vez mais condicionadas pelas possibilidades de criação e multiplicação do conhecimento conectado por meio de redes. É a promoção da economia criativa, que abre portas surpreendentes, como a chamada gamificação de processos, produtos e serviços.
Hoje, o mercado de games superou o faturamento da indústria de cinema e música, juntos. Com o fechamento de teatros, cinemas e casas de shows devido à pandemia, ganhou força a demanda por conteúdo para o setor. A aceleração desse consumo, a importância e o potencial desse mercado abriria um leque de possibilidades.
Os jogos de aventura continuarão como a principal face desse setor, mas a gamificação, que é tudo o que podemos transformar em jogo, pode ser aplicada na educação, meio ambiente e saúde. O treinamento para muitas profissões já é realizado por games específicos, e o “jogador” é também um trabalhador ou prepara-se no cotidiano para ocupar postos de trabalho. Os “e-sports” já colocam milhões diante de novos modelos de audiência e participação virtual.
Já podemos pensar em especialistas em game design, animação, áudio, gestão empreendedora, roteiro, entre outras áreas técnicas. O estímulo para esses novos profissionais pode vir de empresas, associações, governos, mas o seu fortalecimento ocorre por meio de redes estratégicas que acompanham a evolução incessante das tecnologias, destacando-se a emergência do 5G.
A capacitação para uma boa parte dessas oportunidades está, inclusive, no aprendizado prático conquistado com o grande volume de informações disponíveis gratuitamente na rede mundial de computadores e nas interações que esses novos profissionais fazem durante a sua jornada. A economia criativa e a gamificação em comunidades pobres ao redor do mundo têm criado oportunidades de incluir pessoas nos jogos e em redes, como ocorre com o projeto Games for Change América Latina, que desenvolvemos por meio da parceria com a Cidade do Conhecimento da USP.
Nessa teia que se vai tecendo ao redor do mundo, as experiências são trocadas de várias maneiras, rompendo barreiras e abrindo espaço para um mundo mais divertido e criativo dos games, tornando-se ainda uma fonte de conhecimento, estimulando o desenvolvimento de tecnologias e infraestruturas e animando uma nova fronteira para as políticas públicas.
Uma nova geração está diante do desafio de resgatar o sentido do trabalho e da educação, basta evitar o retorno aos velhos normais e criar estímulos a essa aceleração do jogo digital não apenas como fonte de sustento, mas de realização pessoal e possibilidade de transformação do mundo ao nosso redor.
(*) – É economista, sociólogo, jornalista e professor do Departamento de Cinema, Rádio e TV da ECA-USP, presidente da rede Games for Change América Latina e autor de “Brinco, Logo Aprendo” (Ed. Paulus).