Samuel Hanan (*)
Há seis meses a reforma tributária é o assunto predominante na pauta econômica nacional. Demanda antiga da sociedade, em especial dos setores produtivos, foi anunciada pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva como uma das prioridades da nova gestão federal como forma de tornar o Brasil mais atrativo para os investidores e alavancar o Produto Interno Bruto (PIB) em pelo menos 5,5% no prazo de 10 anos.
Tendo à frente o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a reforma foi prometida como neutra – em relação à carga tributária – e simplificadora, com efeitos altamente positivos porque reduziria custos burocráticos e acabaria com a autofágica guerra fiscal derivada da tributação sobre o consumo no destino e não mais no local da produção dos bens e serviços.
O discurso criou uma onda de otimismo com a perspectiva de o novo marco pôr fim ao manicômio tributário em que se transformou o país. Vislumbrou-se, finalmente, a correção de grande parte das injustiças tributárias e maior segurança jurídica para os cidadãos, empresários e investidores.
Esse clima, entretanto, não resistiu às primeiras ações do governo no sentido de dar concretude à promessa. A expectativa começou a ser baixada pelo próprio governo, que logo passou a admitir o crescimento do PIB em 2% em uma década, muito abaixo da estimativa inicial.
O próximo passo foi fatiar a reforma. Na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) enviada ao Congresso Nacional, a tão sonhada simplificação resumiu-se à aglutinação de cinco tributos – IPI, PIS e COFINS (todos da União), ICMS (dos estados) e ISS (dos municípios) – em apenas um, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), com duas alíquotas, uma federal e outra de caráter estadual e municipal. Foram anunciados como os pontos mais positivos da proposta a cobrança de imposto no destino e não mais na origem, com transição gradativa e planejada para implementação completa em 9 ou 10 anos, já a partir de 2024/2025; a unificação da legislação em todo o território nacional; a tributação diferenciada substancialmente menor ou até mesmo a isenção sobre produtos de primeira necessidade, e a eliminação definitiva de cumulatividade. A tributação sobre o consumo seria completada pela instituição do Imposto Seletivo Federal (ISF), aplicável sobre bens nocivos à saúde e ao meio ambiente.
Com o texto aprovado na Câmara dos Deputados e enviada ao Senado, as análises dos especialistas revelaram um ponto amplamente positivo: excepcionalidades amplamente redutoras de tributação sobre produtos da cesta básica, hortifrutis, transporte coletivo e produtos das áreas de saúde e educação.
No entanto, essas excepcionalidades – talvez resultantes de pressões setoriais – acabaram atingindo um patamar muito elevado, a ponto de comprometer o atual nível de arrecadação tributária. Para se alcançar o equilíbrio, haverá a necessidade de tributação sobre os setores não contemplados no texto com aplicação de alíquotas muito elevadas, possivelmente no patamar entre 25% e 29% da receita. Isso elevará o Brasil à condição de uma das 4 maiores tributações sobre o consumo do planeta. A título de exemplos, nos Estados Unidos essa tributação é de 7,5%, na Suíça, de 7,70%; no Japão e na Coréia do Sul, 10%; no Canadá, 5%, e no México, 16%. O atual recordista é a Hungria com 27%.
É assustador, ainda que, a priori, não seja possível concluir definitivamente sobre o aumento ou redução da carga tributária porque as alíquotas do novo IBS somente serão definidas por Lei Complementar, em até 180 dias após a aprovação da PEC pelo Congresso Nacional, o que provavelmente se dará apenas no segundo ou terceiro trimestre de 2024, com risco de tramitação mais lenta em razão de ser um ano eleitoral.
O cumprimento da promessa de neutralidade, por sua vez, ainda é uma incógnita porque não são conhecidas as propostas do governo quanto aos tributos sobre renda, patrimônio, encargos sociais e previdenciários, e outros, cuja soma corresponde a 56%-58% do produto total atualmente arrecadado.
Da mesma forma, não foram revelados os produtos e setores a serem tributados pelo ISF, bem como os tetos das alíquotas e como serão aplicados os recursos tributários garantidos pelo novo imposto.
Essas questões transformaram o otimismo em inquietação de vários setores econômicos diante do efeito negativo desses índices caso o Senado, na apreciação do projeto, não corrija tais distorções. A gritaria já começou. O Centro de Estudos das Sociedades dos Advogados calculou que a categoria sofrerá aumento superior a 400% na tributação. Empresários dos setores de construção e serviços afirmam que atividades hoje tributadas entre 3,65% até 8% sofrerão, com o novo IBS, aumentos que podem chegar a mais de 100%.
O apelo, agora, é para que o Senado examine com maior atenção o fato de que as reduções substanciais concedidas a muitos setores – inclusive não essenciais – levará à punição de outros setores de atividades importantes para o país. Uma saída talvez seja o Senado fixar na PEC o teto de tributação do IBS e do Imposto Seletivo, bem como vetar a majoração de alíquota antes de completada a transição do regime de cobrança na origem para a cobrança no destino, o que deverá acontecer em 2033.
Também soou estranho que, em plena tramitação da primeira etapa da Reforma Tributária na Câmara dos Deputados, o governo federal tenha atropelado a PEC da reforma, editando num domingo (30 de abril) a Medida Provisória nº 1.171, pela qual passou a tributar os rendimentos de brasileiros residentes no País e que possuem investimentos financeiros em empresas ou trusts sediados em paraísos fiscais e/ou em locais com regime tributário diferenciado, como é caso do estado norte-americano de Delaware. A MP inclusive estabeleceu alíquotas progressivas que podem chegar a 22,5% sobre os recebimentos, inclusive sobre desvalorização do real.
A mesma MP irá alcançar também a transferência de bens – imóveis, cotas e/ou ações de empresas, etc – para herdeiros e sucessores, em vida ou pós-morte (ITCMD). Trata-se de outro ponto que merecerá atenção especial dos senadores, uma vez que patrimônio nem sempre confere liquidez ao sucessor ou herdeiro. Além disso, não está explícito se será respeitado o princípio da capacidade contributiva dos beneficiários. Matéria que requer urgência, pois esse tributo produzirá efeito já em 2024 (portanto antes do IBS, que vigorará a partir de 2026) e, embora não tenha sido fixada alíquota progressiva de até 22,5% para rendimentos financeiros, não existe no texto da MP qualquer referência ao ITCMD.
Ainda chama a atenção na nova postura do governo em relação à reforma o anúncio de estudos para a tributação dos cidadãos super-ricos, detentores de fundos de investimento exclusivos ou outros diferenciados e com poucos cotistas, utilizados por famílias de alta renda que pagam impostos apenas na hora do resgate. Projeto de Lei com a medida deverá ser enviada ao Congresso já em agosto, após o fim do recesso parlamentar.
Além disso, igualmente por meio de legislação infraconstitucional, o governo pretende implantar a tributação sobre apostas esportivas – conhecidas como Bets), com alíquotas de 18% sobre o total de apostas das empresas, e de até 30% do valor bruto auferido pelos ganhadores, além de instituir cobrança de outorga sobre a atividade.
É indisfarçável a mudança de comportamento do governo nessa questão. O ministro da Fazenda, que vinha priorizando a PEC da Reforma e conduzindo o processo de maneira habilidosa – ganhando elogios de parlamentares, agentes econômicos e de grande parte da mídia -, agora opta por priorizar o aumento da arrecadação para a União em 2024, uma vez que a reforma tributária, por força de lei, não poderá produzir efeitos para o próximo ano e, talvez, sequer para 2025, à exceção do Imposto Seletivo.
No mercado, já existe a sensação de que o governo perdeu o interesse por uma reforma ampla, preferindo garantir aumento da receita da União a curto prazo por meio de leis e medidas provisórias, como a MP 1.171, vislumbrando algo em torno de R$ 180 bilhões para a somatória das ações acima mencionadas.
O fato é que ficará muito difícil saber qual será a carga tributária no Brasil, pois o fatiamento sem prévia discussão no Congresso impedirá a noção do conjunto, o que não é bom.
Nessa sanha arrecadadora, o governo desrespeita o Congresso e contradiz seu próprio discurso inicial segundo o qual a reforma tributária é fundamental para o país, como de fato é.
Corre-se o risco de o Brasil desperdiçar excelente oportunidade para remodelar o nosso criticado arcabouço tributário para salvaguardar apenas um ente federativo (a União), aumentando sua fatia no bolo arrecadatório que já é grande, entre 59% e 60% de tudo o que é arrecadado compulsoriamente.
O momento atual anuncia a repetição de velhos erros, muito custosos ao desenvolvimento nacional, notadamente a busca pelo equilíbrio fiscal ou redução do déficit público (hoje no insuportável patamar de 8% a 9% do PIB) somente pelo aumento da tributação, que atualmente alcança 33,91% do PIB. Nada se fala sobre redução de privilégios, ganho de eficiência, cortes de gastos e combate explícito e efetivo à corrupção.
O Brasil continua a ignorar a advertência feita pelo filósofo romano Marco Túlio há 2.078 anos, mas ainda atual: “O orçamento deve ser equilibrado, o tesouro público deve ser reposto, e a dívida pública deve ser reduzida, e a arrogância dos funcionários públicos deve ser moderada e controlada e ajuda a outros países deve ser eliminada, para que Roma não vá à falência. As pessoas devem novamente aprender a trabalhar em vez de viver às custas do estado.”
A correção do rumo é urgente e possível. E, mais que um reclamo dos setores produtivos, uma necessidade do país.
(*) É engenheiro, com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros Brasil, um país à deriva e Caminhos para um país sem rumo. Site: https://samuelhanan.com.br