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Justiça 5.0 – O futuro já chegou, e agora?

em Manchete Principal
domingo, 22 de agosto de 2021

Adriana S. L. Esper (*)

Um sábio conselheiro uma vez me contou que o Direito está ligado à história da nossa vida em comunidade. Exemplos não nos faltam de sua importância na organização e manutenção da ordem nas sociedades desde a Antiguidade. Acredito que não seria exagerado dizer que o homem não existe sem o Direito e o Direito não existe sem o homem. Voltaire já dizia que “a mais bela função da humanidade é a de administrar a justiça”.

O Direito sempre acompanhou as grandes transformações da humanidade, da invenção da escrita à tecnologia digital da atualidade. O advogado, como operador do Direito, tem um papel fundamental nesta história e na administração da justiça. Dessa forma, o advogado deve se adaptar às transformações trazidas pelos novos tempos, tal qual o Direito, mas sem perder a sua essência, o princípio ético da justiça.

O mundo já passou por diversas revoluções, todas deixando sua marca na história do homem. No final do século 19, na chamada Sociedade 2.0, as máquinas de escrever começaram a fazer parte do mundo corporativo, facilitando o trabalho que até então era manual. No final do século 20, transição da Sociedade 3.0 para a Sociedade 4.0, os microcomputadores substituíram as máquinas de escrever, facilitando ainda mais a arte da escrita.

A Revolução 4.0 nos trouxe a automatização dos processos manuais, através de tecnologias avançadas que mudaram as formas de produção e os modelos de negócios no mundo inteiro, inclusive da administração da justiça. Estamos entrando agora em uma nova era, a chamada Sociedade 5.0, que chega com um novo conceito de priorização da humanidade. Enquanto que a Sociedade 4.0 pretendia melhorar e facilitar os processos manuais, a Sociedade 5.0 tem por objetivo se valer da tecnologia para otimizar a qualidade de vida das pessoas, ou seja, máquinas a serviço do ser humano.

Imagem: wildpixel_CANVA

E é neste contexto, de uma sociedade em transformação, onde várias tarefas estão sendo substituídas por máquinas inteligentes, que se insere o novo operador do Direito – o Advogado 5.0. E não se preocupe, ele não é uma máquina. Esse advogado deve ser um profissional tecnologicamente preparado, um bom operador não só do Direito, mas também destas novas tecnologias que foram criadas para lhe servir.

O Professor de Informática Jurídica da Universidade de Turim, Ugo Pagallo já afirmou: “Um jurista não informatizado é um analfabeto”. Certamente, no final do século 19 críticas semelhantes devem ter sido feitas aos profissionais que não tinham uma máquina de escrever. Estamos vivendo um período marcado por uma disrupção sem precedentes. Em um mercado altamente competitivo, os profissionais e empresas do setor jurídico que não se alinharem a este novo cenário já partem em desvantagem.

Um dos grandes desafios trazido por esta nova revolução é a capacitação dos profissionais de Direito que já estão inseridos no mercado para lidar com as transformações e inovações tecnológicas que se tornarão indispensáveis para o seu trabalho. Como disse o Prof. Richard Susskind “você vai mesmo dedicar sua vida a competir com essas tecnologias emergentes?”.

E destas tecnologias emergentes, talvez a que mais se sobressai é a inteligência artificial (IA), que pode ser definida como a capacidade das máquinas pensarem como seres humanos de forma autônoma (aprender, perceber e decidir quais caminhos seguir), de forma racional, diante de determinadas situações, tudo isso se baseando em padrões e diretivas alimentados por enormes bancos de dados constantemente atualizados. A IA está por todos os lugares no nosso dia a dia, inclusive na administração da justiça.

Uma pesquisa da Université Paris I Pantheón-Sorbonne de 2015 sobre qualidade da justiça, concluiu que as novas tecnologias são ferramentas essenciais à gestão dos tribunais. De acordo com a pesquisa, a digitalização de processos na França, particularmente das sentenças, ampliou as possibilidades de pesquisa e busca por precedentes através de programas inteligentes de IA, trazendo assim mais qualidade nas decisões dos tribunais. O Judiciário brasileiro também tem intensificado investimentos em IA.

De acordo com uma pesquisa efetuada pela FGV em 2020, existem aproximadamente 60 projetos em diferentes fases de implementação em nossos tribunais. A pesquisa contemplou o STF, o STJ, o TST, os tribunais estaduais, os tribunais regionais federais e os tribunais regionais do trabalho, além do CNJ. Um dos principais objetivos dos nossos tribunais é que a IA traga celeridade processual. Querendo ou não, a IA já faz parte de nossas vidas e não restam dúvidas de seus grandes benefícios. Contudo, é fundamental ter cuidado para que o desenvolvimento tecnológico não saia da perspectiva humana.

A Sociedade 5.0 não se pauta somente na introdução de novas ferramentas, mas também na forma de atuar e saber bem utilizar estas máquinas. Esse conceito é totalmente voltado para o ser humano e suas necessidades, com o objetivo de gerar mais valor e resolver problemas. Lembrando, que cabe ao advogado, como operador de Direito, lidar com diferentes situações, inclusive na aplicação dessas novas ferramentas. Os advogados do futuro precisarão se adaptar à transformação digital pela qual passamos como ser parte da consciência ética dessas transformações.

A Comissão para a Eficácia da Justiça na Europa publicou, em fevereiro de 2019, uma carta sobre o uso ético da IA em sistemas judiciais no âmbito da União Europeia. O documento, destinado aos sistemas públicos e privados, reconhece a crescente importância da IA nas sociedades contemporâneas e seus benefícios à eficiência e qualidade da justiça, mas também propõe princípios éticos para sua utilização em sistemas judiciais e seus ambientes.

No Brasil, a Resolução CNJ 332/2020, também trata do assunto IA e enfatiza que a questão da proteção dos direitos fundamentais na implantação e no uso da IA nos processos deve atender a critérios éticos de transparência, previsibilidade, possibilidade de auditoria e garantia de imparcialidade e justiça, e destaca também o direito a privacidade e proteção de dados pessoais.

O Poder Executivo brasileiro em abril de 2021 definiu a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial – EBIA, na qual aponta diretrizes para o uso adequado da IA, estabelecendo uma governança com metas de uso ético. No Congresso existem pelo menos dois projetos em discussão sobre o uso da IA, um deles chamado de Marco Civil da IA.

Mundo a fora também são discutidas regulamentações sobre o tema, como a lei de privacidade biométrica que entrou em vigor em julho deste ano em Nova York e o projeto de regulamentação de IA apresentado para discussão para os países membros da União Europeia em abril último. O futuro já chegou, não há tempo a perder. As tecnologias inteligentes já fazem parte de tribunais, de rotinas negociais, de nossos escritórios, do nosso dia a dia. E o profissional da área jurídica precisa e deve aprender usar essas soluções ao seu favor, não restam dúvidas dos seus benefícios.

Mas também, o advogado deve ser capaz de impor limites para que estas tecnologias sejam efetivamente empregadas para o serviço e bem estar da humanidade, respeitando sempre os direitos fundamentais do homem e a justiça. “A tecnologia não tem consciência própria. Se ela vai se tonar uma força para o bem ou para o mal depende do homem”, disse John F. Kennedy em seu emblemático discurso de 1962. Nesta época, o homem tinha escolhido ir para lua, agora escolhemos ir além, e atrás de nós está um passado que não poderemos retornar.

Precisamos de advogados capazes de operar as novas tecnologias, mas, sobretudo, precisamos de advogados que saibam ser a sua boa consciência. E a ética, com seus princípios eternos e atemporais dos quais faz parte a justiça, será a grande aliada do Advogado 5.0 nesta jornada. E aquele sábio conselheiro que me inspirou a cursar Direito tinha razão, ajudamos a construir e escrever a história, agora de forma digital, mas sem esquecer a ética.

(*) – Sócia do MSY Advogados; Coordenadora do Comitê de Proteção de Dados do Conselho de Comércio Eletrônico da Fecomercio/SP; e Professora de Compliance e Ética Digital da FIPE- Fundação Instituto de Pesquisas.