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A engenharia da privacidade e os devoradores de dados

em Manchete Principal
quinta-feira, 11 de março de 2021

André Facciolli (*)

“Privacy by Design: depois de consolidar o desenvolvimento ágil, a engenharia de software enfrenta o desafio de reduzir o atrito e proteger informações de terceiros.

A aplicação de uma TI “bimodal”, formalmente descrita pelo Gartner por volta de 2013, foi uma das maneiras pelas quais a indústria de software conseguiu avançar de forma controlada na incorporação do desenvolvimento ágil. A rapidez se tornou crucial. Mas não se podia abrir mão por completo das regulações, embora vistas por alguns como excessivamente protelatórias. Também não se podia saltar, sem um maior cuidado, para fora do rigoroso ‘etapismo’ que está na essência da engenharia como disciplina.

Ainda que não fosse perfeita, a união dos polos constituintes da chamada TI bimodal parecia um casamento lógico e repleto de conveniência. Enquanto na retaguarda e na supervisão dos processos reinava a estabilidade e o rígido traçado da engenharia legada, na frente, atendendo ao balcão, os rapazes do Scrum (ou similares) podiam exercer a ousadia de criar e gerar aplicações e circuitos interativos ao ritmo quase frenético do novo mercado digital.

A regulamentação, as certificações, a norma, tudo isto viria “a quente” (ou até a posteriori), com a incorporação de um risco controlado. Um risco cujo custo-benefício parecia mais interessante do que o atraso nas entregas. Até não muito tempo atrás, com todos os trancos e barrancos, esse novo arranjo da produção vinha se sobressaindo com sucesso, na medida em que aplicações de baixíssimo time-to-market conseguiam atender pontualmente as demandas elásticas que despontavam e sumiam no horizonte.

Esta nova fase da produção, com a profusão das APIs e suas implicações com a retaguarda, acabou por coroar o modelo DevOps. Balanceando rapidez e segurança, chegou-se a um paradigma adequado para se garantir a integridade de processos desde a origem (security by design). Além de colocar os requisitos de segurança norteando toda a articulação de componentes, o novo modelo tem a vantagem de adotar metodologias padrão para a concepção de protótipos.

Pexels

E tem vantagem maior ainda ao poder contar com a submissão imediata desses protótipos a um privilegiado campo de prova: o das grandes comunidades abertas de desenvolvedores, em nível global. Uma diversidade e volume de massa crítica antes praticamente impensável para o departamento de projeto.

  • A privacidade perturbada – É fato que o modelo DevOps pavimentou uma estrada estável em meio ao ambiente turbulento e escorregadio a que a engenharia de software precisou se adaptar, dado o movimento entrópico das tecnologias na sociedade conectada. Mas antes que viesse a bonança, a questão “privacidade alheia” (a privacidade de dados de terceiros) se agigantou como imposição regulatória para o arquiteto de dados e colocou no centro da prancheta a judicialização dos processos digitais.

Se antes a “segurança desde a planta” serviu para balizar o desenvolvimento ágil com a proteção contra ameaças internas e externas (isto é, no interior da rede, algo que se resolvia com IAM), agora o que está em questão é aquele interesse pessoal originalmente fora do plano, alheio ao projeto, um complicador novo e bastante complexo. Alheio às propriedades “naturais” do dono da estrutura, e alheio ao conjunto de ativos para os quais o sistema de segurança foi planejado.

E complexo, na medida em que os marcos legais emergentes (GDPR, LGPD, KYC etc) exigem grande esforço de orquestração e obrigam a engenharia de dados a oferecer supremacia a um ente externo (e não mais apenas ao usuário logado, internamente, aquele se conecta sob a égide das regras intrínsecas de gestão embutidas da rede).

Da palavra de ordem “security by design” passamos agora para fase “privacy by design”. Significa dizer que em todos os pontos e componentes do processo deve residir de forma clara, indelével e rastreável, um motor de negócios normativo lastreado em alguns rígidos princípios tais como:

1 – A soberania total do cliente (e também do usuário interno ou parceiro) em relação a seus dados coletados, processados e armazenados na cadeia de produção digital.

2 – Uma significativa ampliação do conceito de “dados” para incluir fragmentos de informação. Tais como traços biométricos de câmeras digitais, registros de GPS, compostos semântico-comportamentais passíveis de marcação por “tags”, voltados ao marketing programático, ao controle de multidões, ou ao monitoramento do indivíduo.

3 – A exigência de disponibilidade intuitiva, prática e imediata de instrumentos de rastreamento e acompanhamento do ciclo de dados pessoais por parte de seus titulares internos ou externos.

4 – A complicada constituição de ferramentas de coleta documentação de permissões de e sua articulação com instrumentos de relatório e regras de compliance.

5 – A definição e governança do ciclo de validade, conformidade e regras de descarte ou transferência de dados.

6 – A garantia de direito ao esquecimento, implicando na necessidade estrita de governança da localização dos dados na nuvem múltipla, nos dispositivos proprietários da rede, nas APIs, etc.

  • De volta aps mapas azuis – A expressão “blueprint” significando “mapa de engenharia” entrou em voga há algum, tempo trazendo um novo movimento pendular da TI bimodal, recomendando-se agora um retorno mais rigoroso às pranchetas e à estrita regulação dos processos de engenharia.

Se o foco do modelo DevOps pende para a rapidez, as práticas de “privacy by design” se voltam com mais atenção para a necessidade de rigor na diagramação, na prototipia e na testagem dos modelos. Tudo isto com vistas ao complicado elemento ético, sociológico, jurídico e – sobretudo – competitivo das estruturas que precisam estar fim a fim em conformidade com a privacidade de terceiros.

Em seu best Seller de 2018 “Privacys´s blueprint: the battle to control the design of new Technologies”, o teórico Woodrow Hartzog explica a radicalização das legislações de privacidade de dados como uma resposta das massas á insaciável máquina de negócios devoradores de informações de grupos e indivíduos. Sem entrar em todos os meandros da questão, chama atenção a abordagem da garantia de privacidade como um dos problemas vitais da nova sociedade de massas.

Significa dizer que a arquitetura de redes adaptada a este novo mundo precisa se deslocar de dentro do perímetro tradicional da rede para o CIAM (Customer Identity and Access Management). Ou seja, mudando a prioridade matricial, antes focada no backchannel e nas regras de configurações de carga de trabalho (workload).

O foco passa a ser uma interface de massas capaz de cuidar da jornada, da validação e do balizamento “conforme” de informações de clientes em regime de milhares e até bilhões de indivíduos. Todos eles, ainda por cima, com o status de “senhores” de suas identidades, seus atributos, seus interesses e; estes muita vezes conflitantes com o que propõe a estrutura da rede.

(*) – É CEO da Netbr, uma das responsáveis pela introdução no Brasil do conceito de IAM (Identity and Access Management), a partir de 2003 (www.netbr.com.br).