São Paulo de Todos os Tempos e o sentido de respeito à cidade
Dia desses fazendo uma limpeza na estante de livros encontrei embrulhada no meio da bagunça uma fita K-7 que consegui ouvir graças a um antigo gravador comprado na Rua Santa Ifigênia, quando eu ainda fazia reportagens externas para a extinta Rádio Eldorado AM. A gravação trazia uma entrevista de 1995 para o programa São Paulo de Todos os Tempos que apresentei nessa emissora durante 14 anos e que hoje dá nome à nossa coluna no jornal Empresas & Negócios.
Ouvindo o antigo programa fui recordando a rotina das manhãs na época da gravação, há mais de 20 anos. Levantávamos para trabalhar no meio da madrugada, porque às 5 da manhã entrávamos no ar ao vivo com o De Olho na Cidade, um programa de informações ao ouvinte que também acordava cedo. Depois dele seguíamos para o Campo de Marte, onde em um helicóptero fazíamos um sobrevoo de duas horas com orientações do trânsito. Depois dessa missão retornávamos à sede da Rádio Eldorado para preparar o programa que iria ao ar gravado no final de semana com a duração de duas horas.
Preparávamos reportagens pitorescas falando, por exemplo, sobre a localização dos riachos ou córregos que hoje canalizados seguem seu curso no subsolo de grandes avenidas como a 23 de Maio, Pacaembu, Sumaré, Pompeia e 9 de Julho, entre outras. Alguns paulistanos nem sequer imaginam que na avenida do prédio onde moram ou trabalham antes passava um rio.
Nos arquivos do jornal O Estado de São Paulo fazíamos a pesquisa dos nomes de filmes em cartaz de acordo com a época tratada por algum dos entrevistados. No meio da pesquisa descobríamos a presença de grandes circos passando pela cidade, peças de teatro estreladas por atores e atrizes que depois fariam sucesso na televisão e sem a ajuda da internet que ainda engatinhava não existindo ainda os sites de busca, como o google, que hoje facilitam tudo.
Para ilustrar as entrevistas na abertura ou encerramento de cada bloco, utilizávamos músicas que enaltecem São Paulo nas vozes de artistas paulistanos consagrados como Adoniran Barbosa, Demônios da Garoa, Inezita Barroso, Rita Lee, Itamar Assunção e bandas de rock surgidas na capital paulista como Premeditando o Breque, Ultraje a Rigor, Língua de Trapo, Titãs e Ira, entre outras.
Circulando pelas ruas nos carros de reportagem, às vezes pautados pelos próprios ouvintes que telefonavam ao programa sugerindo assuntos, descobríamos casas ou edifícios de valor histórico cuja arquitetura e estado de conservação comentávamos no programa. O resultado foi tão positivo que em 1997 recebemos, pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, das mãos de seu presidente de honra, Hernâni Donato, o Colar do Centenário, maior honraria daquela casa para homenagear aqueles que se destacam em temas ligados à pesquisa histórica.
O São Paulo de Todos os Tempos também obteve o prêmio de melhor programa de cultura e variedades oferecido pela Academia Paulista dos Críticos de Arte (APCA) em 2003 e a Medalha Anchieta e o Diploma de Gratidão da Cidade de São Paulo, ofertados pela Câmara Municipal. Até uma menção honrosa do prêmio de anistia e direitos humanos, entregue pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais, o programa recebeu, quando levamos ao ar em 2005, uma série de entrevistas e reportagens sobre os 30 anos da morte do jornalista Vladimir Herzog, nas dependências do DOI-CODI.
Apesar das premiações, a direção da Rádio Eldorado AM, em determinado momento, decidiu apresentar o programa somente em horários alternativos, ou seja, aos sábados à noite, a partir das 22 horas e aos domingos bem cedo, às 6 da manhã. Particularmente achamos a ideia péssima, acreditando que ninguém ouviria rádio nestes horários, por ser final de semana. Ledo engano, a audiência triplicou e conquistamos um público cativo que seguiu conosco até a última edição, tanto que ainda hoje recebemos mensagens pelas redes sociais de pessoas pedindo a volta do programa.
Tantas histórias interessantes sobre a cidade não poderiam ficar restritas somente ao rádio, por isso lançamos em 2001 um livro com o nome São Paulo de Todos os Tempos trazendo a transcrição de várias das entrevistas feitas no programa. No lançamento, lotamos a Casa das Rosas, na Avenida Paulista, com centenas de pessoas interessadas na obtenção do livro, gerando uma fila que se estendia até o lado de fora da residência transformada em espaço cultural pela prefeitura.
Conforme borderô da RG Editores, foram quase mil exemplares vendidos numa só noite e pessoas acabaram indo embora porque a Casa das Rosas fechava às 10 da noite. Foram tantos pedidos que um segundo volume também foi lançado em 2005, seguido de uma série de exposições e de palestras em áudio visuais que a marca São Paulo de Todos os Tempos, acabou sendo registrada por nós. Depois destes resultados, a direção da Rádio Eldorado devolveu o horário dos domingos ao meio-dia programa que passou a ser apresentado em três horários e assim prosseguiu até a sua última edição em 29 de junho de 2008.
Durante os 14 anos em que esteve no ar, o São Paulo de Todos os Tempos devolveu em parte, um pouco da autoestima que a cidade foi perdendo ao logo das décadas. Exemplos não faltam, a violência urbana é uma delas e a pior de todos as mazelas, é sem dúvida, no nosso entender, a cracolândia. As ruas do centro transformadas em abrigo para as vítimas do vício, é uma vergonha para todos nós. Outra questão comovente é a da mendicância. Em 2016 chegamos a 15,9 mil pessoas vivendo em situação de rua, quase o dobro do existente no ano 2000 e não há perspectiva para soluções de curto prazo.
Mas São Paulo também tem o que existe de melhor no país em termos de universidades, escolas hospitais, artes e espetáculos, cultura, esporte e gastronomia. A capital paulista continua sendo, apesar da atual crise econômica, o maior centro financeiro do país e a maior fonte geradora de empregos, seja no comércio, na indústria ou na prestação de serviços.
Foi comentando a realidade, mas também enaltecendo São Paulo naquilo que ela tem de bom, fizemos pela Rádio Eldorado uma agradável tarefa. Foram ao ar pelo menos 500 entrevistas, como aquela na fita K-7 com cidadãos desta cidade relatando suas experiências, realizações e conquistas, geralmente obtidas à custa de muito trabalho e sofrimento. Cumprimos uma missão e a vida segue. Continuamos a fazer jornalismo e isto também é importante.