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Na fronteira da barbárie

em Especial
quinta-feira, 25 de julho de 2019
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Na fronteira da barbárie

Ocorrência de crimes violentos choca a sociedade e leva o Senado a debater alternativas para diminuir delitos cruéis e contra a vida

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Ação da ONG Observatório de Favelas realizada no centro do Rio de Janeiro chama a atenção para as vítimas de crimes fatais. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Nelson Oliveira/Ag. Senado/Especial Cidadania

“Queria saber como é matar alguém.” Essa foi a justificativa apresentada pelo autor de um dos inúmeros crimes bárbaros cometidos no Brasil de 2018 para cá: o assassinato de Yasmin da Silva Nery, 16 anos, em Araraquara (SP), no dia 9 de junho. Com o auxílio da namorada, um adolescente de 17 anos enforcou e esquartejou a vítima. Depois espalhou os pedaços do corpo em vários locais da cidade.

Sete dias antes, e a 668 quilômetros dali, em Samambaia (DF), Rhuan Maycon da Silva Castro, de 9 anos, havia sido esfaqueado, queimado e esquartejado pela própria mãe e a companheira dela. Um ano antes do assassinato, o menino tivera o pênis mutilado. Em depoimento à polícia, a mãe alegou que matou o filho por ter sido tratada com violência pelo pai e o avô paterno de Rhuan.

imagem 04 temproarioComo as estatísticas sobre criminalidade no Brasil ainda apresentam lacunas importantes — e, por uma questão de rigor metodológico, não se utilizam da classificação “crime bárbaro” —, mortes com ingredientes de crueldade não são facilmente visualizadas nos levantamentos de dados. Não há, portanto, como saber se o país está diante de uma onda de crimes mais violentos que o padrão, já bastante violento, da criminalidade no Brasil ou se tudo não passa de distorção midiática.

O fato é que essas ocorrências, atribuídas muitas vezes a transtornos de personalidade, causam grande dor e prejuízo às vítimas e às pessoas próximas — o que não é medido por estatísticas —, além de exercerem um forte poder sobre o imaginário do público. Cada barbaridade parece superar a outra. E a cada ocorrência, a população se diz chocada e clama por providências.

Paradoxalmente, o concurso macabro de assassinatos tem convivido no noticiário com indícios de que o número geral de mortes violentas intencionais está caindo. No dia 12 de junho, o Ministério da Justiça divulgou estatísticas do recém-criado Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp) que registram uma queda de 23% no número de homicídios dolosos no primeiro bimestre deste ano: 6.543 casos no cômputo de janeiro e fevereiro contra 8.498 no primeiro bimestre de 2018.

O país vinha acompanhando com ansiedade a curva ascendente dos homicídios de um modo geral. As chamadas mortes violentas intencionais haviam atingido 61.597 casos em 2016 e passaram a 63.895 no ano seguinte, aumento de 3,7% que se aplica aos homicídios dolosos, latrocínios, lesões corporais seguidas de óbito e mortes em decorrência de intervenções policiais em serviço e fora dele.

No que se refere particularmente aos dolosos, os registros haviam passado de 54.338 em 2016 para 55.900 no ano seguinte — aumento de 2,9%, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. De acordo com o Sinesp, no entanto, em 2017 o total dos homicídios teria caído para 53.404 casos — diferença de 2.496 ocorrências em relação aos dados do fórum.

Divergências estatísticas à parte, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, credita a queda à “atuação integrada entre governo federal e governos locais”.

Para o consultor do Senado na área penal Tiago Ivo Odon, a curva descendente dos homicídios é positiva, mas suas razões ainda estão para ser totalmente esclarecidas. Uma possível causa pode ser a adoção de programas de segurança pública por parte de alguns estados, com foco na resolução de assassinatos.

De acordo com o Monitor da Violência, informe produzido pelo site G1, as administrações estaduais ultimamente mais bem-sucedidas no combate aos crimes contra a vida relataram um conjunto de ações disciplinares mais rígidas em presídios, como revistas frequentes e isolamento ou transferência de chefes de grupos criminosos para presídios de segurança máxima. Mencionaram ainda a adoção de secretaria exclusiva de administração penitenciária; a “integração entre as forças de segurança e Justiça” e a instalação de delegacias voltadas à investigação de homicídios, uma recomendação antiga de estudiosos, conforme observa Odon.

— Os chamados crimes bárbaros, como o do menino Rhuan, na verdade são aleatórios e raros. É claro que a imprensa capitaliza em cima. Mas eles fogem da média, e sempre que acontecem impressionam a opinião pública. O problema é que quando você olha para os crimes violentos de uma forma geral, nosso sistema [segurança pública] não lhes dá prioridade — observa o consultor.

Ele vê como negativo o excesso de foco no encarceramento de traficantes de pequeno porte, que superlotam as unidades prisionais e acabam por fazer ou aprofundar sua ligação com facções. Enquanto isso, faltam vagas para isolar criminosos mais perigosos — sejam eles participantes de grupos de extermínio, autores de latrocínio ou cidadãos que matam cônjuges, parentes ou vizinhos.

Infelizmente, a violência que cruza a fronteira da barbárie não se resume a assassinatos cruéis numa sociedade que ainda convive com cerca de 80 mil pessoas desaparecidas anualmente. Passa igualmente pela lesão corporal seguida de morte, pelos estupros, que só aumentam, e se mescla a uma série de atos indignos da condição humana, entre os quais os ataques com ácido, os atropelamentos de moradores de rua e as humilhações de mulheres e cidadãos de outros gêneros no campo da sexualidade.

De calouras de faculdade sendo obrigadas a recitar frases pornográficas nos famigerados trotes à pediatra que teve seu nome associado à prostituição pelo ex-marido inconformado, a base cultural que fomenta os atos ultraviolentos encontra eco em debates nas redes sociais. Em postagem recente no perfil do Senado no Facebook, dezenas de internautas mostraram desdém em relação ao feminícidio e à lei que qualificou o homicídio de mulheres quando praticado para impedir sua autonomia.

imagem 02 temjporairoEm março, a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, disse na ONU que o Brasil “sofre hoje verdadeira epidemia de crimes violentos contra mulheres e meninas”, apesar da legislação “avançada”, que inclui as Leis Maria da Penha (de 2006) e do feminicídio (de 2015). O país está “muito aquém do desejado” no combate à violência contra a mulher, disse Damares, conforme o jornal O Globo.

Apesar da evidente fragilidade de mulheres e crianças, muitas destas arrastadas para morte pelas tempestades nos relacionamentos entre os pais, os homens também figuram entre vítimas recentes. Foi o caso de um policial militar do interior de São Paulo, morto a marretadas a mando da namorada por seu envolvimento amoroso com a filha dela.

O assassinato de Rhuan é mencionado pela senadora Soraya Thronicke (PSL-MS) como parte de um quadro “insuportável” e que exige respostas duras em termos de isolamento de criminosos. Seguindo essa abordagem, tramitam no Senado duas proposições.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 47/2019, de autoria do senador Lasier Martins (Podemos-RS), prevê regime integralmente fechado para condenados por crimes hediondos cometidos com violência contra a pessoa. Assim, os condenados pelos crimes de homicídio qualificado, homicídio praticado em atividade típica de grupo de extermínio, latrocínio, extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante sequestro, estupro e estupro de vulnerável não poderiam pedir a progressão de pena para um regime aberto ou semiaberto.

A mudança na Constituição seria necessária, dada a decisão de 2006 do Supremo Tribunal Federal (STF) que invalidou o regime inicial fechado previsto na Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072, de 1990), garantindo aos juízes a prerrogativa de avaliar a progressão de regime individualmente. A tipificação do homicídio qualificado — caso dos episódios de crueldade e barbárie — como crime hediondo data de 1994. Decorreu de emenda popular motivada pelo assassinato da atriz Daniella Perez, em 1992, com 18 tesouradas, pelo ator Guilherme de Pádua e a namorada dele, Paula Thomaz.

“A única maneira de endurecer a resposta penal para esses crimes que chocam a nossa sociedade pela brutalidade e violência é por meio de alteração do próprio texto constitucional”, escreve Lasier na justificativa da PEC. “Na prática, o autor de um crime violento pode começar no semiaberto. E se for condenado a mais de 8 anos, sendo réu primário, pode migrar para o semiaberto cumpridos 2/5 da pena”, reclama o parlamentar.

imagem 03 temporarioGuilherme de Pádua foi julgado antes da regra dos 2/5 e condenado a 19 anos e 6 meses de prisão, mas cumpriu apenas 6 anos. O mesmo ocorreu com o ex-goleiro do Flamengo Bruno Fernandes, que acaba de migrar para o “semiaberto domiciliar”. Em 2013, ele foi condenado a 17 anos e 6 meses em regime fechado por homicídio triplamente qualificado da sua ex-amante Eliza Samúdio, cujo corpo, desaparecido em 2010, jamais foi encontrado. Ele chegou a ser solto por liminar do STF em 2017, ensaiou uma volta ao futebol, mas retornou à prisão, depois de cassada a liminar. Não chegou, portanto, a ficar seis anos preso. A mãe de Eliza, Sônia Moura, declarou à imprensa estar indignada com a progressão concedida a Bruno.