Maior virtuose do bandolim é lembrado no seu centenário
Mestre do choro, Jacob do Bandolim se destacou por suas composições e pesquisas sobre música brasileira
A discografia de Jacob conta com 52 discos em 78 rotações, 12 LPs e uma série de participações em registros de outros artistas. |
Luiz Prado/Jornal da USP
Jacob Pick Bittencourt teria completado cem anos em 14 de fevereiro passado. Escrevente juramentado do Rio de Janeiro que chegou a escrivão titular, Jacob foi um sujeito estudioso, com fama de exigente, disciplinado e perfeccionista. Balanceava o rigor com que encarava a vida juntando-o uma grande emotividade. Talvez isso explique os três infartos que sofreu. Do último não escapou, desabando para sempre nos braços da esposa Adylia, logo após voltar da casa do mestre e amigo Alfredo. Tinha 51 anos e deixou um casal de filhos. Isso foi em 13 de agosto de 1969, na Rua Comandante Rubens Silva, 62, em Jacarepaguá.
No tempo livre, entre outras coisas, Jacob se dedicou a coletar documentos sobre a música brasileira. Foram décadas de trabalho que resgataram e preservaram a obra de autores como Ernesto Nazareth, Candinho do Trombone e João Pernambuco. Os números do arquivo impressionam: cerca de 1.400 discos de 78 rotações, 142 LPs, mais de 1.200 livros, revistas e catálogos, 10 álbuns de fotografia, 122 rolos magnéticos e 5.458 partituras. Também foi um fotógrafo amador com conhecimento de revelação, microfilmando milhares de partituras. Não à toa, uma coleção dessa magnitude viria a integrar o acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro a partir de 1974.
Com as horas que lhe restavam, Jacob dedilhava o bandolim. E foram seus passeios pelo aço das cordas que o tornaram imortal. “Jacob foi um músico extraordinário, um grande virtuose do bandolim”, comenta o flautista e professor da ECA/USP Toninho Carrasqueira. “Ele tocava muito expressivamente. Quando o Jacob surgiu, todo mundo ficou impressionado com a expressividade do toque dele, da palhetada dele. Emocionava as pessoas.”
O primeiro instrumento foi um violino, aos 12 anos. A lenda conta que Jacob não se adaptou ao arco e o dispensou em favor dos grampos de cabelo da mãe. Foi uma amiga da família que disparou: “O que esse menino quer é tocar bandolim”. Estava feito. Confinado na disciplina rígida da mãe, ia da escola para casa, ou seja, para o bandolim. E ensaiava exaustivamente, sem professor.
Aos 15 anos, Jacob ribombava na Rádio Guanabara com o Conjunto Sereno: era sua primeira apresentação, tocando Aguenta a Calunga, choro de Attilio Grany. Em menos de seis meses estava no programa Horas Luso-Brasileiras, desvendando fados ao lado do guitarrista Antonio Rodrigues e dos cantores Ramiro D’Oliveira e Esmeralda Ferreira. Espécie de educação informal e alternativa, a temporada fadista de Jacob foi responsável pelo formato característico do seu bandolim, mandado fabricar como uma espécie de versão menor da guitarra portuguesa. “O bandolim, de uma forma geral, e a forma do Jacob tocar vêm muito do fado”, pontua Carrasqueira. “Essa expressividade brasileira é herdeira da expressividade do fado.”
No mesmo mês em que dançava pelo fado, Jacob se inscreveu despre-tensiosa-mente no Progra-ma dos Novos, na Rádio Guanabara. Era o dia 27 de maio de 1934, data em que bateu 28 concorrentes e ganhou nota máxima dos jurados Orestes Barbosa, Francisco Alves e Benedito Lacerda. A contratação pela rádio era certa. Com o grupo Jacob e sua Gente, acompanhou nomes como Noel Rosa, Augusto Calheiros, Ataulfo Alves, Carlos Galhardo e Lamartine Babo.
A vida pelo bandolim nunca foi o suficiente para pagar as contas. Daí veio o emprego público, datado de 1940 e assumido por sugestão de Donga. Ficou nele até o fim da vida. Antes da repartição, Jacob também vestiu o paletó de vendedor, corretor de seguros e dono de farmácia.
Sua primeira gravação solo viria mais de uma década depois da estreia radiofônica, em 1947. Um 78 rotações com sua composição Treme-Treme no lado A e a valsa Glória, de Bonfiglio de Oliveira, no verso da bolachinha. Jacob já era um veterano dos estúdios, entretanto: participara de registros antológicos como Leva Meu Samba, de Ataulfo Alves, e Ai que Saudades da Amélia, de Ataulfo e Mário Lago.
A trajetória no rádio o acompanharia até o fim. Trabalhou na Nacional, onde apresentou e produziu Jacob do Bandolim e seus Discos de Ouro. Entre um disco e outro de seu acervo que compartilha com os ouvintes, revela seu apreço pela tradição. “Ele tinha uma paixão enorme pela música brasileira tradicional, mas, ao mesmo tempo, ele inovava, ele colocava ritmos ou harmonias inusitadas e inesperadas”, analisa Carrasqueira sobre a debatida dicotomia entre tradição e inovação em Jacob.
Atento ao passado e voltado para o futuro, Jacob chama a atenção do maestro Radamés Gnattalli. Surge a suíte Retratos. Peça em quatro partes para bandolim e orquestra, Retratos é uma homenagem a Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e Anacleto de Medeiros e foi a obra responsável por uma guinada nos métodos já rigorosos de Jacob. De tocador “de ouvido” passa a estudioso obsessivo, como relata o próprio em carta para Gnattalli: “Valeu estudar e ficar dentro de casa o Carnaval de 64, devorando e autopsiando os mínimos detalhes da obra”. Em agosto do mesmo ano Jacob estreia sua interpretação de Retratos acompanhado pela Orquestra da CBS, no saguão do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro. Música popular se fundia à linguagem camerística.
Mais famosos que suas idas aos salões, entretanto, foram os saraus que Jacob organizava na própria casa em Jacarepaguá. Encontros de exaltação à música, executados com ouvidos atentos e bocas caladas. “O respeito dele pela música era tão grande que ele não permitia que ninguém falasse enquanto eles estavam tocando”, lembra o professor, cujo pai foi amigo de Jacob. “Se alguém falasse, ele mandava embora ou ia embora.”
Pelos saraus passaram gente como Dorival Caymmi, Elizeth Cardoso, Ataulfo Alves, Paulinho da Viola e Serguei Dorenski. Deste último, pianista russo, é a responsabilidade por levar aos soviéticos, através das ondas da Rádio Moscou, o som mágico do bandolim de Jacob.
Foi nos últimos anos de vida que fundou o Época de Ouro, conjunto que o acompanhou em gravações que se tornaram seminais como Vibrações e o disco ao vivo com Elizeth Cardoso e o Zimbo Trio. Isso foi em 1968.
No ano seguinte, Jacob partia. Quando faleceu, na varanda da própria casa, acabava de voltar da casa de Alfredo, também conhecido como Pixinguinha. Sabendo que o amigo passava por problemas, tentava acertar a gravação de um disco só com músicas do mestre, com renda revertida para ele. Não aconteceu.
Ficaram as gravações e as composições. Noites Cariocas, Receita de Samba, Doce de Coco, Assanhado, Vibrações. E a homenagem do filho, Sérgio Bittencourt, tornando pública sua dor e saudade:
“Naquela mesa ele sentava sempre
E me dizia sempre o que é viver melhor
Naquela mesa ele contava histórias
Que hoje na memória eu guardo e sei de cor
Naquela mesa ele juntava gente
E contava contente o que fez de manhã
E nos seus olhos era tanto brilho
Que mais que seu filho
Eu fiquei seu fã
Eu não sabia que doía tanto
Uma mesa num canto, uma casa e um jardim
Se eu soubesse o quanto dói a vida
Essa dor tão doída, não doía assim
Agora resta uma mesa na sala
E hoje ninguém mais fala do seu bandolim
Naquela mesa tá faltando ele
E a saudade dele tá doendo em mim
Naquela mesa tá faltando ele
E a saudade dele tá doendo em mim”.