Ferramenta auxilia na preparação tática de goleiros
Um modelo matemático desenvolvido por pesquisadores brasileiros permite determinar, antes mesmo que a jogada ocorra, quais são as melhores decisões que um jogador pode tomar em situações específicas de uma partida esportiva
Pesquisadores desenvolvem modelo matemático para avaliar decisões de jogadores de futebol. Metodologia também poderá ser aplicada em outros esportes. |
Peter Moon/Agência FAPESP
Com a ferramenta é possível, por exemplo, avaliar o desempenho do atacante e do goleiro em um lance de chute a gol no futebol – sem levar em consideração o resultado da jogada, com foco apenas nas decisões que cada um tomou. O trabalho, apoiado pela Fapesp, foi divulgado na Plos One.
“É um trabalho inovador. Estudos anteriores abordaram a avaliação da decisão em um jogo recorrendo à avaliação de especialistas, recaindo em limitações ligadas à subjetividade da análise. Nós usamos apenas probabilidades, medidas a partir da observação de muitos outros jogos de mesma complexidade”, disse Leonardo Lamas, pesquisador da Faculdade de Educação Física da UnB e primeiro autor do artigo.
Segundo Lamas, embora a validação do modelo tenha sido feita com foco na avaliação de goleiros de futebol diante de diferentes situações de ataque, a metodologia de análise pode ser aplicada em outros esportes coletivos e de oposição (modalidades em que existe confronto entre adversários). A pesquisa foi feita em colaboração com Junior Barrera e Guilherme Otranto, do Instituto de Matemática e Estatística (IME-USP), e Rene Drezner, da Escola de Educação Física e Esporte da USP. De acordo com Barrera, seu interesse pelo assunto surgiu ainda na década de 1990, quando assistia às partidas de futebol de seu filho, Rodrigo – goleiro em um time mirim de futsal.
“Como ele jogava bem, passou para o futebol de campo. Quando vi o menino no gol imenso, pensei: como ele vai fazer pra chegar na bola, sendo tão pequeno? Mas percebi que, em cada jogada, o gol de futebol de campo poderia se reduzir ao gol de futsal, se o goleiro estivesse adequadamente posicionado”, disse. Tal constatação disparou a fagulha inicial do trabalho. Ao longo dos anos, Barrera acompanhou o progresso esportivo do filho, cuja habilidade acabou lhe rendendo um convite para cursar uma universidade norte-americana.
Ao longo da trajetória de treinamentos do menino, Barrera foi formalizando uma estratégia de posicionamento de goleiros, que foi refinada em conjunto com Felipe Rodriguez da Silva, um especialista em treinamento de goleiros formado na base do São Paulo FC. Ao longo do texto vamos nos referir a esta estratégia por “primeira estratégia”. Dado que essa é a primeira formalização conhecida de estratégia da dinâmica de movimentação de goleiros no futebol mundial.
Durante a evolução desse trabalho, Barrera conheceu o cientista do esporte Leonardo Lamas. Há sete anos, Lamas e Barrera escreveram um primeiro trabalho, que analisava as decisões de goleiros em uma das edições do campeonato brasileiro. “O estudo inicial foi submetido a um periódico inglês de prestígio, porém recusado. Um dos revisores disse que o nosso trabalho definia erro baseado em informação a posteriori”, disse Barrera.
“Inicialmente, não entendemos o que ele quis dizer. Depois, percebemos que o revisor se referia a definirmos como erro a identificação de outra ação do goleiro que seria mais bem-sucedida do que a observada no lance analisado, sem levar em conta que a eventual aplicação da nova ação poderia levar o atacante a escolher outra ação. Entendemos, então, que a questão central para a análise de decisão de jogadores dependia de formular um modelo que permitisse definir erro de decisão, escapando da armadilha da observação a posteriori”, disse.
Na sequência do trabalho, a equipe passou a contar também com o cientista do esporte Rene Drezner e com o cientista da computação Guilherme Otranto. O grupo dividiu o problema em duas partes na tentativa de encontrar uma solução.
“Nosso estudo teve dois objetivos. O primeiro foi definir um método para avaliar as decisões de um jogador durante um jogo baseadas nas probabilidades de sucesso de suas ações. Para isso, diante da quantidade enorme de ações que o atleta pode realizar, era fundamental determinar uma abordagem para agrupar essas muitas ações em classes genéricas – ainda que representativas das variáveis que distinguem as ações ofensivas”, disse Lamas.
Um exemplo de classe de ação é o passe. O jogador pode decidir passar a bola para a direita, para a esquerda, para frente ou para trás. Se esses passes ocorrem longe da região ofensiva e sem verticalidade no campo, têm pouco impacto para o jogo e podem ser agrupados em uma classe genérica “passe”.
Diferentemente, eventos de finalização têm grande relevância para o entendimento das tomadas de decisão. Chutes a gol, portanto, são tratados em classes mais específicas, levando em conta a direção do chute, distância, efeito, altura, entre outros fatores.
“Construímos o modelo de representação de classes considerando parâmetros relevantes do ataque e da defesa. E fizemos a aplicação ao futebol, em situações de finalização ao gol. Nesta aplicação ao futebol, conversamos com técnicos de alto nível, vasculhamos a literatura e assistimos a muitas partidas do campeonato europeu de seleções”, contou Lamas. Definido o modelo de classes, o grupo partiu para o desafio levantado pelo revisor que havia recusado o trabalho tempos antes: tratar do problema com a devida isenção científica, considerando todas as alternativas de ações de todos os jogadores envolvidos na jogada.
Os pesquisadores aplicaram então o conceito de “oráculo” para desenvolver um grande banco de dados de lances semelhantes aos que pretendiam analisar, calculando a probabilidade de ocorrência de cada resultado possível em um lance a partir da variação dos parâmetros que definiam cada classe de ação analisada. Esse foi um divisor de águas no trabalho, alçando a descoberta a um patamar de ineditismo ainda mais elevado.
“Feito isso, o segundo objetivo do trabalho foi validar a nova metodologia, de avaliação das decisões com base em probabilidades, aplicando-a na análise da estratégia dos jogadores em situação real de jogo. O método foi aplicado no contexto do goleiro de futebol”, disse Lamas. Criamos um oráculo com lances de 65 goleiros profissionais que jogaram em seleções nacionais nas Copas do Mundo de 2010 a 2014. Esse oráculo foi aplicado na avaliação da primeira estratégia, assim como na avaliação dos goleiros Gianluigi Buffon (Itália) e Júlio César (Brasil).
A análise de diversos lances de decisão de Buffon e Júlio César permitiu estimar as suas estratégias. As estratégias de Buffon, Júlio César e a primeira estratégia foram analisadas com base no oráculo.
“Ao confrontar os resultados do oráculo com as três estratégias que analisamos, verificamos que, em grande parte, as decisões foram próximas daquelas com as menores probabilidades de gol do oráculo. Ou seja, todas apresentaram um bom desempenho em termos de decisões. Vale dizer que isso pode não ter significado sempre na realização de uma defesa. Pode ocorrer o ‘frango’, caso em que o goleiro se posiciona perfeitamente para uma defesa, mas executa mal o gesto técnico e a bola passa de forma banal por ele”, explicou Lamas. Ainda segundo o pesquisador, um processo qualificado de treinamento deve diferenciar o treino tático do treino técnico.
“No Brasil, temos uma ênfase muito grande no treino técnico e físico e menor cuidado com a parte tática, de inteligência, fundamental para o bom desempenho. Isso é bastante verdade no caso dos goleiros”, disse. Na faceta aplicada do trabalho, os pesquisadores cuidaram para que a primeira estratégia fosse a mais didática possível, favorecendo seu uso no dia a dia de treinamento. O modelo se vale das linhas do campo e mais algumas regiões facilmente delimitadas em um campo de futebol. Há inclusive técnicos de goleiros que já estão colocando em prática essas regras de posicionamento.
O trabalho foi desenvolvido no âmbito do Projeto Temático “Armazenagem, modelagem e análise de sistemas dinâmicos para aplicações em e-Science”, que integra o Programa Fapesp de Pesquisa em eScience. “O estudo trata de um problema específico do esporte, que faz parte de uma abordagem mais geral:o armazenamento, a modelagem e a análise de sistemas dinâmicos. Nesse contexto geral, o trabalho apresenta um modelo para um problema complexo de análise e projeto de interações cooperativas e/ou competitivas entre agentes num ambiente dinâmico ”, disse João Eduardo Ferreira, professor do IME-USP e coordenador do Temático.
Ferreira destaca que o modelo matemático tem aplicações possíveis nos mais variados ambientes dinâmicos. “Na área esportiva, por exemplo, temos aplicações interessantes para planejamento de estratégias. Em medicina, temos aplicações na área de segurança transfusional de sangue”.