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Estudo resgata a história do Movimento do Custo de Vida

em Especial
segunda-feira, 04 de dezembro de 2017
Estudo 1 temporario

Estudo resgata a história do Movimento do Custo de Vida

Criado em 1973, a partir dos Clubes de Mães e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica na periferia sul de São Paulo, o Movimento do Custo de Vida (MCV) incorporou outras forças políticas; cresceu em número e articulação; e, em 1978, colocou nas ruas mais de 20 mil pessoas, em um ato público realizado na Praça da Sé, em plena ditadura civil-militar

Estudo 1 temporario

Em oposição à política econômica da ditadura civil-militar, o movimento, que atuou de 1973 a 1982, promoveu as primeiras grandes manifestações populares do Brasil depois de 1968 (detalhe da capa do livro ‘Como pode um povo vivo viver nesta carestia’).

José Tadeu Arantes/Agência FAPESP

Contornando as barreiras policiais, que procuraram impedir o acesso dos manifestantes ao local, e contrariando a ordem de que o ato fosse realizado apenas no interior da catedral, a manifestação transbordou pelas escadarias. No mesmo evento, foi apresentado um abaixo-assinado de âmbito nacional, com 1,3 milhão de assinaturas, a ser entregue à Presidência da República, reivindicando o congelamento dos preços dos gêneros de primeira necessidade; o aumento dos salários acima do aumento do custo de vida; e um abono salarial de emergência imediato e sem desconto para todas as categorias de trabalhadores.

A história do MCV, praticamente desconhecida pelas novas gerações, é o objeto do livro ‘Como pode um povo vivo viver nesta carestia: o Movimento do Custo de Vida em São Paulo (1973-1982)’, de Thiago Nunes Monteiro. Resultado de trabalho de mestrado feito na USP, com orientação da professora Maria Aparecida de Aquino, o livro foi publicado com apoio da FAPESP.

“Monteiro pesquisou nos principais arquivos do Estado de São Paulo. Ele consultou material produzido pelo próprio MCV e sobre o movimento, como discursos na Assembleia Legislativa do Estado (Alesp) e no Congresso Nacional, artigos de imprensa da época e documentos do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops-SP). Com base nessa documentação extensa, fez um trabalho de mestrado com nível de doutorado. Por isso, sem que fosse apresentada qualquer solicitação nesse sentido, sua dissertação foi selecionada, pelos pareceristas da USP, para publicação em livro”, disse Aquino.

Conforme explicou a orientadora, o MCV foi a resposta a um processo inflacionário, que corroía o poder aquisitivo das camadas populares, sem que houvesse a contrapartida de elevações salariais. Com uma linguagem acessível às pessoas menos instruídas, os folhetos produzidos pelo movimento recorriam a imagens marcantes como a de que os salários subiam pela escada, enquanto o custo de vida disparava pelo elevador.

Comissão do MCV encarregada da entrega de abaixo-assinado em Brasília em 1978.O livro cobre uma década de atividade do MCV e acompanha seu nascimento, ascensão, apogeu, declínio e fim. “Adotei como balizas temporais os anos 1973 e 1982. Em 1973, o MCV foi criado, com base nos Clubes de Mães, já atuantes na periferia de São Paulo. Em 1982, o movimento já havia esgotado sua capacidade de mobilização em São Paulo, e a última manifestação agendada acabou não ocorrendo, por falta de público”, disse Monteiro. A maior força no início do movimento – e a própria condição para que ele ocorresse – foi a Igreja Católica, liderada pelo cardeal dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo.

“Por meio dos Clubes de Mães e das CEBs, a Igreja mobilizou grande número de participantes, residentes nos bairros populares da periferia. Além disso, foi a Igreja que proporcionou a infraestrutura material necessária, como espaços para reuniões ou mimeógrafos para a produção de folhetos. Mas, desde o começo, houve também a participação de pessoas ligadas à luta sindical e à oposição ao regime ditatorial, incluindo agrupamentos de esquerda, especialmente militantes do PC do B”, disse.

Estudo 2 temporarioÀ medida que o MCV cresceu, criou-se uma coordenação central; outros militantes de esquerda, que não moravam anteriormente nos bairros onde o movimento atuava, se incorporaram a ele; e chegou-se ao auge com o abaixo-assinado de 1,3 milhão de assinaturas. A partir de 1978, a capacidade de mobilização foi, gradualmente, reduzida. As causas do declínio foram objeto de outros estudos, que enfatizaram a influência prejudicial das disputas por hegemonia entre as várias forças políticas. Monteiro reconhece que essas disputas contribuíram para a desmobilização, mas considera que esta não pode ser atribuída a uma única causa.

“Movimentos populares com objetivos limitados, como a construção de creches ou o asfaltamento de ruas, são capazes de proporcionar pequenas vitórias concretas, que retroalimentam a mobilização. O MCV, porém, tinha um objetivo de escala nacional, que só poderia ser alcançado com a revisão de toda a política econômica do regime. A incapacidade de obter uma vitória desse porte pode ser apontada como uma das causas para o seu progressivo esvaziamento. Além disso, surgiram outras pautas e espaços de atuação, que atraíram parte dos militantes”, disse Monteiro.

Para Aquino, é preciso contextualizar o declínio do MCV. “O fim da década de 1970 foi caracterizado pelo eclipse do regime ditatorial. Houve crise econômica, a emergência de um novo sindicalismo com as greves do ABC paulista em 1978, mobilizações dos estudantes e de outros setores da população por liberdades democráticas. Tudo isso sinalizou que não havia mais condições de sobrevivência para a ditadura no longo prazo. O MCV foi a resposta possível em um contexto anterior. Mas o novo contexto gerou outras oportunidades de enfrentamento do regime ditatorial”, disse.

Perguntado sobre as lideranças que se destacaram no movimento, Monteiro citou três: Aurélio Peres, operário metalúrgico, e Irma Passoni, freira que abandonou a vida religiosa para se engajar nas lutas da periferia sul; em 1978, os dois foram eleitos, respectivamente, como deputados federal e estadual. “Além deles, Ana Dias teve um papel muito importante no MCV desde o início, embora seja mais lembrada como a companheira do operário metalúrgico Santo Dias da Silva, que também atuou no MCV e foi assassinado por um soldado da Polícia Militar, durante repressão à greve dos metalúrgicos de São Paulo”, disse.

Em 31 de outubro de 1979, 30 mil pessoas saíram às ruas do centro de São Paulo para acompanhar o cortejo fúnebre e protestar contra o assassinato de Santo Dias. O policial responsável por sua morte, condenado em primeira instância, foi unanimemente absolvido pelo Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo. Há 38 anos, familiares e companheiros de militância de Santo se dirigem, todos os anos, ao local onde Santo foi morto e escrevem, com tinta vermelha, a frase “Aqui foi assassinado o operário Santo Dias da Silva, no dia 30-10-1979, pela Polícia Militar”.