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Dos balcões aos tabuleiros, a comida de rua chega à capital da Província de SP

em Especial
sexta-feira, 23 de agosto de 2019
Homem 1 temproario

Dos balcões aos tabuleiros, a comida de rua chega à capital da Província de SP

Estudo mostra como o desenvolvimento da cidade de São Paulo determinou hábitos alimentares dos seus habitantes, de 1765 a 1834

Thomas Ender. Convento do Carmo em São Paulo, 1817. Aquarela, 19 x 30,2 cm. Kupferstichkabinett der Akadenie der bildenden Kunste, Viena, Áustria. Foto: Reprodução

Texto: Carmo Gallo Netto/Fotos: Reprodução/Jornal da Unicamp

A historiadora Rafaela Basso, orientada pela professora Leila Mezan Algranti, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, se propôs a estudar o desenvolvimento da alimentação fora do espaço doméstico, com foco na alimentação de rua, na cidade de São Paulo entre os anos de 1765 e 1834. Entretanto, o trabalho de Rafaela, que é funcionária do Sistema de Arquivos da Unicamp (Siarq), assumiu dimensões maiores e se desenvolveu acompanhando a dinâmica envolvida desde a produção, circulação e consumo dos gêneros alimentícios não só nas ruas mas também em outros espaços. Mais ainda, a pesquisa identifica as pessoas que circulavam pelas ruas nesse período e todos os agentes envolvidos em tais práticas e como estas estavam relacionadas com os processos de transformações que ocorriam na cidade. Em decorrência, a alimentação além de constituir um objeto de pesquisa em si mesma é também adotada como categoria explicativa para o entendimento da sociedade paulistana, capaz de possibilitar a compreensão do processo de transformação da cidade em seus vários âmbitos.

A ideia, portanto, foi a de investigar não só os gêneros produzidos, comercializados e consumidos na rua e em outros lugares mas também identificar os locais de abastecimento de víveres para consumo do dia a dia, como vendas, armazéns, tavernas, mercados. Mesmo porque, e essa era a hipótese inicial do trabalho, em um contexto urbano diversificado e dinâmico, como o de São Paulo de fins do século XVIII e início do XIX, as práticas alimentares e a forma de preparo e de consumo dos alimentos e os espaços onde eles ocorriam podiam exercer papel importante na consolidação das identidades dos vários seguimentos sociais. Este enfoque possibilitou caracterizar a sociedade paulistana através dos fazeres do cotidiano e dos sujeitos neles envolvidos. O trabalho oferece certo fascínio para quem se interessa por historiografia.

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Thomas Ender. Palácio do Governo em São Paulo, 1817. Aquarela, 19,6 x30,6 cm. Kupferstichkabinett der Akadenie der bildenden Kunste, Viena, Áustria. Foto: Reprodução

O interesse da autora em estudar a alimentação na cidade não é recente e começou em 2005, quando na graduação desenvolveu dois trabalhos de iniciação científica sobre o tema buscando desvendar a importância do milho na cultura alimentar paulista. Essas pesquisas, mais que respostas, suscitaram questões, o que a motivou ao mestrado em que se propôs a investigar o tema com mais profundidade no período entre 1650 e 1750. O doutorado surgiu diante da constatação de que o desenvolvimento da alimentação estava intrinsecamente relacionado às transformações do ambiente urbano de São Paulo.

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Charles Landseer. 1827 Cidade de São Paulo. Lápis, 19 x 27 cm. Coleção IMS, Rio de Janeiro, Brasil. Foto: Reprodução

A respeito do recorte cronológico estabelecido no estudo, a autora esclarece que o período compreendido entre a segunda metade do século XVIII e as primeiras décadas do século seguinte constitui um espaço de constantes transformações, em que ocorrem o nascimento e a diversificação de novas práticas cotidianas. O marco inicial, 1765, aponta para o momento de restauração da autonomia administrativa da capitania de São Paulo, que ficara anexada ao governo do Rio de Janeiro por 17 anos. O novo governo autônomo reorganiza a capitania nos aspectos administrativo, militar e econômico, com incentivos ao comércio, à pecuária e à produção agrícola. Foi nesse contexto que o pequeno comércio de alimentos se desenvolveu na cidade, garantindo a sobrevivência de pequenos comerciantes e determinaram novos significados para a alimentação paulista.

Fontes, um grande desafio
A autora ressalta que sua incursão na história da alimentação constituiu um grande desafio por ser tratar de um campo ainda recente na historiografia brasileira, principalmente diante da dificuldade de estabelecer interlocuções e utilizar embasamento teórico-metodológico. Isso a fez se indagar sobre processo fundamental do ofício de historiador, recorrendo a ensinamentos de grandes mestres dos Annnales Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel, especialmente no que diz respeito ao uso de duas das principais ferramentas do historiador que são as fontes documentais e o tempo, pois o tempo longo permite captar mudanças lentas como as dos hábitos alimentares. “Ficou claro durante a pesquisa que o ato de alimentar foi transformando-se ao longo do tempo em decorrência de influências culturais, econômicas e políticas relativas aos grupos sociais envolvidos. Para captar as nuances dessa prática foi necessário, além do tempo estendido, trabalhar com um corpo documental extenso e variado que permitiu o cruzamento de dados de naturezas diferentes sem o que seria impossível apreender os diversos significados da alimentação de rua”, afirmou.

Um dos principais grupos documentais trabalhados pela autora foram os Maços de População. Trata-se de uma documentação de caráter demográfico que permitiu escrutinar os domicílios da cidade, pois informam a composição das famílias, suas atividades econômicas e o número de escravos que tinham. “Isso me permitiu estabelecer, por exemplo, como a composição social dos domicílios foi mudando ao longo do tempo”, diz ela.

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Jean-Baptiste Debret. São Pedro, 1827. Aquarela sobre papel, 14 x 21 cm. Coleção Beatriz e Mário Pimenta Camargo, São Paulo, Brasil. Foto: Reprodução

Outra fonte documental importante utilizada foram as Atas e os Livros de Registros da Câmara Municipal que trazem à tona os principais problemas cotidianos da cidade, revelam a presença dos açougues públicos, do Mercado das Casinhas e mencionam normas para a realização do abastecimento, os reclamos da população em relação aos alimentos difíceis de encontrar, o que evidencia hábitos alimentares da população. Ao compulsar essa documentação, ela localizou uma coleção denominada Papéis Avulsos, conjunto de mais vinte volumes de manuscritos encadernados que tratam dos mais diferentes assuntos sobre a cidade paulistana e nunca antes explorados no âmbito da alimentação. “Nesses documentos achei dados incríveis sobre abastecimento e principalmente sobre a venda de alimentos na rua, que mostram inclusive os reclamos da população com relação aos resíduos deixados pelas quitandeiras ao cozinharem os alimentos na rua, que me permitiram inferir como esses alimentos eram preparados”, constata ela.

A pesquisadora trabalhou também com crônicas e relatos de viajantes que vieram para o Brasil no início do XIX. Europeus, oriundos de um universo completamente diferente, eles descreviam tudo que viam e que era vendido nas ruas e no Mercado das Casinhas, por exemplo. Algumas aquarelas (veja abaixo) legadas por essas viajantes podem representar o universo alimentar das ruas paulistanas da época.

Foram utilizadas também amostras de inventários de grupos de comerciantes e pessoas empobrecidas, que relacionando os bens deixados, permitem determinar do que viviam e o que produziam, pois deles constam lavouras, criações, equipamentos legados.

Outro grupo de documentos importantes foram os jornais, embora abranjam um período muito pequeno, pois a imprensa chegou a São Paulo apenas em 1827. Os anúncios das casas de pasto, de armazéns, de vendas revelam os produtos de alimentação que circulavam pela cidade.