Combate a Lampião quase entrou na Constituição de 1934
Ao longo das décadas de 1920 e 1930, Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, espalhou o terror pelo Nordeste. Com seu bando, percorreu o sertão atacando vilas, matando inocentes, saqueando mercearias, achacando fazendeiros, roubando gado, trocando tiros com a polícia
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Ricardo Westin/Arquivo S/Ag.Câmara
A carreira do criminoso brasileiro mais célebre de todos os tempos chegou ao fim há 80 anos. Descoberto numa fazenda em Sergipe, Lampião foi morto pela polícia a tiros de metralhadora, ao lado de outros dez cangaceiros, incluindo Maria Bonita, sua companheira. Até o New York Times deu a notícia do histórico 28 de julho de 1938. Os senadores e os deputados da época olhavam o cangaço com preocupação.
Documentos guardados nos Arquivos do Senado e da Câmara mostram que os parlamentares trataram do tema na tribuna em inúmeras ocasiões. Em 1926, o senador Pires Rebello (PI) discursou: “Quem vive nesta capital da República [Rio], poderá achar que o governo tem feito a felicidade completa dos brasileiros. Ofuscados pelos brilhos da luz elétrica, é natural que os cariocas não saibam que naquele vasto interior existem populações aquadrilhadas fora da lei que zombam da Justiça e ridicularizam governos”.
Muitos cangaceiros haviam assustado o Nordeste antes de Lampião, como Cabeleira, Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino e Sinhô Pereira, mas nenhum foi tão temido quanto o rei do cangaço. As investidas de Lampião eram tão brutais que, na Assembleia Nacional Constituinte de 1934, deputados nordestinos — a Assembleia não teve senadores — redigiram cinco propostas para que a nova Constituição previsse o combate ao cangaço como obrigação do governo federal.
A repressão cabia às volantes, batalhões itinerantes das polícias dos estados. O que parte dos constituintes desejava era que o Exército reforçasse a ação das volantes. O deputado Negreiros Falcão (BA) afirmou: “Os Lampiões continuam matando, roubando, depredando, desvirginando crianças e moças e ferreteando-lhes o rosto e as partes pudentas sem que a União tome a menor providência. Os estados por si sós, desajudados do valioso auxílio federal, jamais resolverão o problema”.
O deputado Teixeira Leite (PE) lembrou que os governos estaduais eram carentes de verbas, armas e policiais: “A força policial persegue os bandoleiros, prende-os quando pode e mata-os quando não morre. Hostilizados de todos os lados, recolhem-se à caatinga e se tem a impressão de que o bando se extinguiu. Mera ilusão. O vírus entrou apenas num período de latência. Cessada a perseguição, os facínoras repontam mais violentos e sequiosos de sangue e dinheiro, apavorando os sertanejos e a polícia”.
Leite explicou por que seria diferente com o Exército em campo: “Que bando se atreveria a aproximar-se de uma zona onde estacionassem tropas do Exército, com armas modernas, transportes rápidos e aparelhos eficientes de comunicação?”. Outra vantagem era que as tropas federais podiam transitar de um estado a outro. As estaduais não tinham tal liberdade — e os cangaceiros tiravam proveito disso. Uma vez encurralados em Alagoas, por exemplo, os bandidos escapavam para Sergipe, Bahia ou Pernambuco, estados nos quais as volantes alagoanas não podiam atuar.
Nenhuma das propostas que davam responsabilidade ao governo federal vingou, e a Constituição de 1934 entrou em vigor sem citar o cangaço. “Na nova Constituição, vamos invocar o nome de Deus. Vamos também constitucionalizar Lampião?”, ironizou o deputado Antônio Covello (SP).
Para o deputado Francisco Rocha (BA), o cangaço exigia ‘remédio social’, e não ‘remédio policial’: “As causas do cangaceirismo são a falta de educação, estrada e justiça e a organização latifundiária preservando quase intactas as antigas sesmarias coloniais, para não mencionar a estúpida ação policial dos governos”.
Segundo o jornalista Moacir Assunção, autor de ‘Os Homens que Mataram o Facínora’, sobre os inimigos de Lampião, o cangaço surgiu na Colônia e tinha a ver com o isolamento da região: “O sertão ficava separado do litoral e mantinha uma ligação muito tênue com Lisboa e, depois, com o Rio. O que prevalecia não era a justiça pública, mas a justiça privada. Era com sangue que o sertanejo vingava as ofensas. Muitos aderiram ao cangaço em razão de brigas de família ou abusos das autoridades. Uma vez cangaceiros, executavam a vingança contando com a proteção e a ajuda do bando”.
Lampião entrou no cangaço após a morte de seu pai pela polícia, em 1921. “O cangaceiro não era herói. Era bandido mesmo”, esclarece Assunção. A aura de herói tem a ver com um atributo valorizado pelo sertanejo do passado: a valentia. O cangaceiro enfrentava a polícia sem medo, de peito aberto. Isso era heroísmo. Em 1935, com a nova Constituição já em vigor, o senador Pacheco de Oliveira (BA) apresentou um projeto que destinaria 1,2 mil contos de réis aos estados para repressão ao cangaço. O dinheiro sairia do orçamento da Inspetoria Federal de Obras contra as Secas, responsável pela abertura de açudes, poços e estradas no sertão.
A grande preocupação de Oliveira eram os criminosos que atacavam os trabalhadores e atrasavam as obras. “Um engenheiro avisou sobre o risco que corria seu pessoal. Como não lhe chegassem recursos, lançou mão do único expediente que lhe era praticável: armou os trabalhadores”. Os cangaceiros matavam os operários por terem ciência de que a chegada do progresso ao sertão colocaria em risco o futuro das quadrilhas nômades.
O historiador Frederico Pernambucano de Mello, autor de ‘Quem Foi Lampião’, diz que havia motivos não confessos para que o governo federal e os estados pouco fizessem para acabar com o bandido de uma vez por todas: “Lampião vivia fora da lei, mas mantinha excelente relacionamento com os poderosos. Era protegido por coronéis e políticos. O governador de Sergipe, Eronildes Ferreira de Carvalho, tinha amizade com Lampião e lhe fornecia armamento e munição”. A boa vida de Lampião acabou quando Getúlio Vargas deu o golpe de 1937 e instaurou o Estado Novo. Uma das bandeiras da ditadura era a modernização do país. Nesse novo Brasil, que deixaria de ser agrário para se tornar urbano e industrial, o cangaço era uma mancha a ser apagada.
A gota d’água foi um documentário mudo que revelou ao país a rotina do bando de Lampião na caatinga. O que se via eram cangaceiros alegres, bem vestidos e com joias. Nem pareciam fugitivos. Sentindo-se afrontado, Vargas ordenou aos governadores do Nordeste que parassem de fazer vista grossa e aniquilassem o rei do cangaço.
Assim se fez. Lampião e seus subordinados foram mortos e decapitados em 1938, e o governo expôs as cabeças em cidades do Nordeste.
Bandidos de outros grupos correram para se entregar, de olho na anistia prometida a quem delatasse companheiros. Corisco, o último dos pupilos de Lampião, foi morto em 1940, e o cangaço enfim se tornou passado.