Caminhos para recuperar a saúde pública
Na noite de domingo (1º) dois homens se embriagavam no estacionamento de um supermercado de Brasília, a cerca de 8 quilômetros do Congresso Nacional. Eles apoiavam os copos no teto do veículo enquanto faziam piadas e passavam mensagens por celular. Estavam para sair, conforme disseram aos amigos do outro lado da linha
Equipe médica presta socorro em acidente de trânsito. Fotos: Tarsila Pereira/Prefeitura de Porto Alegre
Nelson Oliveira e Ana Luisa Araujo/Ag. Senado/Especial Cidadania
Não se sabe para onde foram, mas o resultado da mistura de álcool e volante pode ter sido um acidente com morte e lesão corporal. Em casos como esses, as vítimas são atendidas por ambulância e unidade hospitalar do Sistema Único de Saúde (SUS). E, sendo assim, ocupam leitos e outros recursos que poderiam estar servindo a outros cidadãos. Muito provavelmente alguém ficou sem acesso a remédios, aparelhagem de exames, médicos e enfermeiros.
Quando a segunda-feira raiou atrás da Praça dos Três Poderes, haviam se passado 7 anos, cinco meses e alguns dias desde que o senador Wellington Fagundes (PL-MT) apresentara um projeto de lei para punir, de maneira muito específica, os condutores de veículos responsáveis por machucar ou matar pessoas no trânsito, ao dirigirem sob o efeito de álcool ou outras drogas. Eles teriam que ressarcir o SUS das despesas com o tratamento de saúde das vítimas.
O projeto de Fagundes foi apresentado ainda durante seu mandato na Câmara dos Deputados, em 2012, mas tem enfrentado as reviravoltas usuais da tramitação legislativa: depois de anexado a projeto que também tratava de acidentes de trânsito, acabou sendo preterido por proposta substitutiva que mudou a chamada Lei Seca, de 2008.
Qualificação da atenção primária favorece maior eficiência de todo o sistema (foto: Márcio Martins/Prefeitura de Belo Horizonte)
No início de 2016, um ano depois de se eleger senador, Fagundes ressuscitou a proposta, aprovada em maio na Comissão de Assuntos Sociais (CAS). Atualmente, o Projeto de Lei 32/2016 tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), sob a relatoria do senador Fabiano Contarato (Rede-ES).
— O gasto com esses acidentes representa um prejuízo muito grande ao país por conta de um ato de irresponsabilidade. O projeto é importante para que possamos preservar a vida e parar de desperdiçar tanto recurso — explicou o parlamentar na apresentação da proposta.
Se aprovada na CCJ, e não havendo recurso para votação em Plenário, a matéria seguirá diretamente para Câmara.
Contarato antecipou à Agência Senado a conclusão do seu relatório. Entende que o projeto é constitucional, pois não implica qualquer prejuízo à garantia de atendimento universal e gratuito às vítimas do SUS. E em respeito a essa garantia, o relator vai apresentar emenda para suprimir do texto original apenas o ressarcimento dos custos com o tratamento do próprio motorista infrator. Tal cobrança poderia ferir o direito que todos têm, indistintamente, de serem atendidos pelo sistema público de saúde sem qualquer ônus direto, já que o SUS é financiado com dinheiro de impostos.
“O direito ao atendimento universal e gratuito vale para todos aqueles que batam às portas do SUS. Assim, o tratamento do motorista infrator, enquanto vítima de seu erro, deve permanecer gratuito, em nossa opinião, sob pena de violarmos a garantia de gratuidade. O mesmo raciocínio se aplica em relação aos seus dependentes econômicos”, argumenta Contarato no relatório.
Assim como o autor da matéria, ele considera que os acidentes de trânsito têm sido historicamente responsáveis por enormes gastos no âmbito do SUS e que a medida procura fazer justiça, ao impor ao motorista criminoso um ônus atualmente suportado por toda a sociedade.
No Senado, a ideia de cobrar a conta pelo atendimento no SUS até agora recebeu mais apoios do que reações contrárias em enquete disponibilizada pelo canal e-cidadania, mas 302 pessoas ainda consideram justo que a saúde pública arque com os custos de danos causados por motoristas e motociclistas infratores, um fardo de R$ 2,9 bilhões entre 2009 e 2018.
No seu relatório à CAS, a senadora Mailza Gomes (PP-AC) não deixou dúvida quanto à ação danosa dos que dirigem sob o efeito de álcool ou outras substâncias psicoativas: “O trânsito mata mais de 40 mil pessoas por ano no país. De acordo com o Ministério da Saúde, entre 70% e 80% das vítimas de acidentes de trânsito são atendidas pelo SUS. Esses acidentes são a segunda causa mais frequente de atendimento nos serviços públicos de urgência e emergência”. Daí, segundo ela, ser “razoável” a cobrança.
— Apoio integralmente esse projeto. Que os motoristas irresponsáveis, assassinos do asfalto, eximam o SUS de pagar essas contas. Isso se chama responsabilidade social — diz o engenheiro Fernando Diniz, presidente da Trânsito Amigo, organização não governamental dedicada à causa das vítimas de trânsito e seus parentes.
O filho dele, Fabrício Diniz, morreu exatamente em uma colisão na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, em março de 2003. Era passageiro de um carro dirigido por motorista sob a influência de drogas. Duas passageiras, ambas com 18 anos, também morreram no acidente. Segundo Diniz, Marcelo Henrique Negrão Kijak, que andava em alta velocidade e fazendo zigue-zagues, ainda hoje está foragido da Justiça.
Tabagismo Outro fator externo a perturbar o dia a dia do SUS é o das moléstias causadas por maus hábitos. O tabagismo, por exemplo, causa doenças pulmonares (câncer e enfisema), bucais (tumores) e circulatórias (pressão alta, aterosclerose e infarto). Segundo o doutor em cirurgia bucal e especialista em Planejamento de Sistema de Saúde, Eugênio Vilaça, o custo para aumentar um ano de vida de um usuário de cigarro com cirurgia por revascularização do miocárdio é de US$ 25.000. Taxar a venda de cigarros tem um custo infinitamente inferior: entre US$ 3 e US$ 50. O cálculo é parte de um amplo estudo sobre redes de atenção em saúde feito por Vilaça para a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).
O reforço à luta contra os custos extras da Saúde foi oferecido em maio pela Advocacia-Geral da União, que protocolou ação cobrando dos fabricantes de cigarro o custeio de gastos com doenças relacionadas ao tabagismo. “Nos EUA, essas mesmas empresas já pagam essa conta há 20 anos. Já pagaram mais de US$ 160 bilhões, mas no Brasil ainda não foram responsabilizadas”, afirmou Adriana Carvalho, diretora jurídica da Aliança de Controle do Tabagismo, depois de reunião com advogado-geral da União, André Luiz Mendonça, no último dia 21.
Se conseguir aliviar as pressões externas, o SUS terá caminhado um bom trecho em direção aos seus objetivos primordiais: a universalidade, a equidade e a integralidade.
Em agosto, depois de seis anos, pesquisadores do IBGE voltaram a campo para perguntar aos brasileiros sobre seus problemas de saúde e sobre o atendimento no SUS. Sondagens menos amplas têm confirmado a visão negativa captada nos chamados protestos de junho de 2013: 55% dos entrevistados em 2018 pelo Instituto Datafolha, por demanda do Conselho Federal de Medicina (CFM), consideravam ruim a oferta em saúde, ainda que defendessem a manutenção do serviço (88%).
Fruto da Constituição de 1988, O SUS é considerado a maior iniciativa política de inclusão do mundo. Entretanto, por ter objetivo tão grandioso, comporta dificuldades de igual magnitude. Os problemas cotidianos enfrentados por seus usuários são bastante conhecidos: demora na marcação de consultas e realização de exames, filas para conseguir cirurgias e lentidão no atendimento emergencial. Uma das causas são os equipamentos não inaugurados ou quebrados.
Outra, a principal, na opinião de especialistas, foi apontada em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado em junho passado: a má distribuição dos profissionais pelas regiões brasileiras e sua concentração nas grandes cidades.
A disparidade na alocação de profissionais de saúde foi objeto do polêmico projeto Mais Médicos, que trouxe profissionais de Cuba para atuarem no Brasil durante o governo Dilma Rousseff. Contrária a esse modelo, a administração Bolsonaro baixou a Medida Provisória 890/2019 que institui o programa Médicos Pelo Brasil. A MP está, neste momento, na Comissão Mista Provisória que avalia se a medida tem urgência e relevância, dois requisitos para que possa tramitar nas duas Casas do Congresso Nacional.
Apesar da gravidade do quadro, no interior e nos grandes centros, e da importância do SUS para um contingente de aproximadamente 200 milhões de pessoas, o senador Paulo Paim (PT-RS) não vê os problemas do sistema sendo priorizados por governantes e parlamentares.
“A pauta do Congresso, quem decide é o Congresso e os milhões de brasileiros que nos elegeram. E esses brasileiros gostariam que recolocássemos esse assunto de volta no centro do palco”, anunciou o senador em discurso no Plenário. Ele se disse assustado com a disparada nas mensalidades dos planos de saúde.
O ponto de vista de Paim é corroborado pela mais recente pesquisa do DataFolha sobre a avaliação do governo federal.
Para 18% dos entrevistados, a área mais problemática é a da saúde. Educação e desemprego aparecem em segundo lugar, com 15% cada. A segurança pública, um dos assuntos mais controversos em destaque no noticiário, foi citada por 11% entrevistados em agosto, quando em julho tinha sido apontada por 19% das 2.878 pessoas ouvidas em 175 municípios de todas as regiões do país.
No entender de Fábio Gomes, consultor da Câmara dos Deputados, a preocupação da sociedade com a saúde pública é um dado inegável e deve ter resposta à altura. Não há como adiar uma condução firme e articulada do SUS que substitua o corre-corre atrás de soluções emergenciais, locais e episódicas.