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Brasil, um desperdiçador em dois mundos

em Especial
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017
Instituto Cidade Amiga

Brasil, um desperdiçador em dois mundos

Países ricos e pobres desperdiçam na mesma proporção, a diferença é a forma: nos subdesenvolvidos, 40% das perdas acontecem na colheita e no transporte. Já nos países desenvolvidos, a mesma proporção é desperdiçada no consumo, de acordo com a FAO.

Instituto Cidade Amiga

No Brasil, 26 milhões de toneladas de alimentos vão para o lixo anualmente,
como resultado de despreparo e desleixo.

O Brasil, segundo técnicos da Embrapa, pode ser enquadrado nos dois modelos, dependendo da região ou da localidade. Se há muita perda no campo, 39 mil toneladas de alimentos próprios para consumo são jogados no lixo todos os dias pelos consumidores. Apesar de “não ser justo que pessoas passem fome e outras joguem no lixo uma quantidade extraordinária de alimentos”, como afirmou a senadora Ana Amélia (PP-RS), jogar comida fora, seja in natura, processada ou industrializada, é um costume brasileiro desdobrado em vários cacoetes.
Quebrar a ponta do quiabo para ver se está tenro é um deles, conforme mencionou em audiência pública no Senado o pesquisador da Embrapa Antônio Gomes. “Depois disso, alguém vai comprar aquele quiabo que está na gôndola?”, questionou. O também pesquisador da Embrapa, Gustavo Porpino, acompanhou o dia a dia de famílias brasileiras e norte-americanas de baixa renda com o intuito de diagnosticar os fatores e os diferentes comportamentos que as levam a jogar comida fora (bit.ly/desperd-embra).

Porpino traçou perfis dos desperdiçadores levando em consideração atitudes como a de comer doces antes das refeições; jogar quantidades grandes de comida fora sem remorso; cozinhar mais do que o necessário; guardar sobras na geladeira até que estraguem; e planejar a compra e o preparo da comida de forma consciente.

Coleta de alimentos no lixo ainda é cena comum no Brasil, resultado de inércia cultural, dificuldade na fixação de padrões morais e falhas no sistema de abastecimento.No Brasil, 41% das famílias são desperdiçadoras, ou seja, jogam comida fora sem dó. Já nos Estados Unidos, apenas 15% foram classificadas nessa categoria. Para o pesquisador, os norte-americanos têm um sentimento de culpa maior com relação a jogar a comida no lixo “porque são educados conforme a doutrina da religião protestante”. Já para a cultura do brasileiro, o ato de jogar no lixo uma comida que poderia ser reaproveitada “traz um distanciamento da pobreza”.

A compra mensal abundante também foi associada ao desperdício. A prática, acredita Gustavo, pode ser justificada pela instabilidade financeira das famílias pesquisadas, o que as leva a aproveitar promoções do tipo “pague 2 e leve 3”. “Eu fotografei estoques com 18 garrafas de óleo, 15 quilos de arroz, mesmo em casas com apenas um casal e um filho”, atesta o pesquisador (Ag.Senado).

Como desmontar essa máquina

Mercadinhos em Lisboa evitam as pilhas de frutas, comuns no Brasil, e pedem respeito aos compradores.O desperdício de alimentos é usualmente classificado por parlamentares, estudiosos e líderes de opinião como crime, mas sempre em sentido metafórico. Afinal, não é ato tipificado em código legal, embora signifique a deterioração de nutrientes, quando ainda há pessoas passando fome, e a dilapidação de insumos agrícolas e recursos ambientais. Desperdiçar alimentos, portanto, não gera multa e tampouco leva à prisão. A culpa é de quem, em particular, se, de praxe, decorre do encadeamento de ações compartilhado por toda a sociedade?

A FAO alerta: 30% de tudo o que é produzido no mundo perdem-se em alguma parte do caminho entre as mãos de quem planta e as bocas de quem come (ou quer comer). Isso corresponde a 1,3 bilhão de toneladas. Só no Brasil, 26 milhões de toneladas ficam no meio do caminho em vez de chegarem ao prato dos mais de 7 milhões de famintos (veja infográfico na página 24). O conhecimento técnico para minimizar essas perdas ao longo do processo de plantio, colheita, encaixotamento, transporte, armazenamento e venda já existe.

De modo idêntico, estão claras as principais mudanças de hábitos exigidas dos moradores das cidades: planejamento de compras, maior cuidado na escolha e manuseio de frutas e hortaliças e incremento da disciplina na conservação dos produtos. O problema, conforme o consultor do Senado Marcus Peixoto, é a falta de informação e capacitação das pessoas envolvidas. “É preciso instituir mecanismos de políticas públicas e campanhas educativas para conscientizar a sociedade de que esse problema afeta a todos, inclusive o consumidor, que acaba pagando mais caro para compensar a perda que aconteceu lá no campo”, prega o consultor.

A economia doméstica arca, similarmente, com o custo provocado pelo desmazelo de parte dos mercados. É comum que estoques mal programados de frutas apodreçam à espera de descontos. Não por outro motivo, debate-se no Senado projeto que institui a Política Nacional de Combate ao Desperdício e à Perda de Alimentos. A proposta surgiu, na forma de emenda substitutiva, como resultado de audiências públicas na Comissão de Agricultura. “Somos caracterizados pelo primarismo. O problema é generalizado”, resume o relator dos projetos, senador Lasier Martins (PDT-RS) (Ag.Senado).