Associativismo ginástico marca gênese da educação física no país
Tese mostra como imigração alemã no Sul e Sudeste foram importantes para a difusão do esporte
Ginasta se preparando para realização de salto em altura na 5ª Deutsches Turnfest organizada pelo Itajaí-Gau em Blumenau, 1932. |
Patrícia Lauretti/Jornal da Unicamp
O Clube Ginástico Desportivo do Rio de Janeiro tem em seu brasão um símbolo cujo significado é, muito provavelmente, desconhecido da maioria de seus associados. Trata-se de uma cruz formada por quatro efes que representam palavras escritas em alemão. Elas formam o lema da ginástica alemã que veio para o Brasil com os imigrantes daquele país no final do século 19 e início do século 20. Para eles, a riqueza do ginasta era ser “vivo, livre, alegre e devoto”.
Mas a herança da ginástica alemã não está apenas no brasão do clube carioca. Sua principal contribuição foi sustentar, juntamente com a França e a Suécia, o tripé que deu origem à educação física no Brasil. Dentre as três ginásticas, a alemã ainda era a menos estudada provavelmente em razão da dificuldade da maioria dos pesquisadores com a língua.
Não foi o caso de Evelise Amgarten Quitzau. Fluente em alemão, ela foi aluna da professora Carmen Lúcia Soares, da área de história da educação física da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp, com quem desenvolveu um programa de pesquisa que foi da iniciação científica à tese de doutorado, com o objetivo de investigar parte da história da ginástica alemã no Brasil.
Com bolsa Fapesp, Evelise viajou para as regiões Sul e Sudeste, onde houve colônias de imigrantes que criaram associações de ginástica. Também foi mais longe: viajou para a Alemanha, igualmente com bolsa Fapesp, buscando acesso a um conjunto de documentos considerados fundamentais.
O resultado da análise foi a tese “Associativismo ginástico e imigração alemã no Sul e Sudeste do Brasil (1858-1938)”, defendida na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, dentro da linha de pesquisa que estuda educação e história cultural à qual sua orientadora também é vinculada.
Para além das práticas corporais, o associativismo era a maneira encontrada pelos imigrantes alemães para preservar sua cultura, principalmente a língua alemã e sobretudo o ideal de germanidade, que de fato foi o que sustentou os clubes teuto-brasileiros até pelo menos 1938, quando Getúlio Vargas determina, em lei, a nacionalização.
Diferenças
Antes é preciso dizer. Educação física, ginástica e esporte são coisas diferentes. “O que a gente chama de educação física hoje era chamado de ginástica. São exercícios que começam a ser sistematizados a partir de questões pedagógicas e científicas. Os alemães, franceses e suecos, no século 19, começam a pensar dessa forma. Temos nessa época também, paralelamente, o início, na Inglaterra, do desenvolvimento do que conhecemos como esporte moderno”, explica a pesquisadora.
O esporte, ressalta, são as práticas burocratizadas, “com caráter competitivo e que tem regras e espaço bem delimitados”. Um torneio de ginástica poderia ocorrer em uma praça, envolvendo várias modalidades praticadas por todos. Um torneio esportivo geralmente se desenvolveria entre quatro linhas, envolvendo uma única modalidade que requer a especialização daquele que a pratica.
“A ginástica incorpora, desde os exercícios mais básicos, como as corridas, os saltos os exercícios de equilíbrio e arremessos, a exercícios mais elaborados, como aqueles feitos em aparelhos. Também fazem parte as atividades ao ar livre, como jogos e as caminhadas em meio à natureza”, detalha Evelise.
De acordo com a pesquisadora, a confusão entre os termos, se há, pode estar relacionada com um processo de “esportivização” pelo qual a ginástica passou no século 20, bem como outros exercícios físicos. “A ginástica vai deixando de ter um caráter tão múltiplo para se tornar uma modalidade baseada em regras universais, com códigos de pontuação, com primeiro, segundo e terceiro lugares, com federação internacional; ela vai se conformando dessa forma mais burocrática”.
Nos clubes estudados na tese, os associados também faziam movimentos em aparelhos, entre os quais as barras paralelas e o cavalo. Havia torneios de ginástica. Porém, o objetivo não era vencer. Quem conseguia uma pontuação mínima já era considerado campeão. “Num torneio com 30 participantes, você poderia ter 25 ou mesmo 30 vencedores. O ginasta que ia para aparelhos também arremessava tijolos, por exemplo. Havia essa multiplicidade, que se perdeu com a esportivização”.
As associações ofereciam treinamento em ginástica, mas, ao mesmo tempo, tinham grupos de teatro, de música, de canto. As escolas locais eram atendidas. “As associações buscavam ampliar a atuação no interior da colônia alemã. Como manter-se numa associação custava caro, eles faziam trabalhos em escolas envolvendo as crianças que no futuro, seriam potenciais associados”. Em Porto Alegre, salienta a autora, havia grupos de escoteiros dentro do clube que recebiam, também, crianças que não eram filhas de seus associados.
O funcionamento das associações em todos os Estados era similar, baseado em estatutos tendo como finalidade “o fortalecimento moral e físico dos associados bem como a preservação da língua alemã”. Ao lado da igreja e da escola, as associações eram consideradas pilares da ideia de identidade alemã entre os imigrantes que se fixaram no Brasil.
“Nos festivais de ginástica as associações se reuniam tentando reproduzir no Brasil o que havia na Alemanha, onde os clubes se organizavam em âmbito regional e também em uma federação. Mas no Brasil as distâncias eram gigantes, a comunicação e os meios de transporte precários, de modo que os festivais se tornam a forma de se aproximar e debater a possibilidade de união”. No Rio Grande do Sul, em 1895, é formada a primeira e mais bem-sucedida Liga de associações. O estado, juntamente com Santa Catarina, concentrou o maior número de associações de ginástica fundadas pelos alemães.
A partir da década de 1930, Paraná e norte de Santa Catarina também tentam se organizar melhor. “Em meados dessa década surge também a ideia de organizar uma entidade sul-americana englobando os teuto-argentinos, teuto-uruguaios, teuto-brasileiros”, afirma. Neste período, contudo, começa o declínio do associativismo ginástico com a política de nacionalização do Governo Vargas, que acerta em cheio as associações no momento em que elas mais cresciam e procuravam se organizar.
“As políticas de nacionalização, a partir de 1938, vão influenciar as bases do associativismo ginástico. A primeira base é afetada com a proibição da língua alemã ou estrangeira, porque todos os documentos encontrados estão em língua alemã e as associações propagavam a ideia de serem mantenedoras da língua germânica”, salienta.
Até mesmo os nomes das associações precisam ser mudados, bem como os estatutos, que deveriam garantir que os clubes eram entidades brasileiras. “A ruptura é tão grande que muitas associações desapareceram e as que continuaram mudaram suas características. Algumas conseguiram se tornar grandes clubes que permanecem ativos ainda hoje, como é o caso da Sogipa, de Porto Alegre, ou do Pinheiros, de São Paulo, antes Esporte Clube Germânia”.
Outro fator complicador: em1938 o partido nazista começa a pressionar as associações para conseguir filiados. Em algumas regiões, pontua Evelise, as entidades acabaram incorporando os ideais e se aproximam do partido nazista, como no Rio de Janeiro ou em Blumenau (SC).
O Rio Grande do Sul é o Estado que apresentou maior resistência ao assédio do partido nazista. “A associação de Porto Alegre publica, em 1937, um livreto explicando os motivos de serem contrários à anexação de clubes teuto-brasileiros a associações do Reich. Segundo o documento, os alemães no Brasil não estariam sem pátria, pois escolheram estar no país. Filiar-se a instituições do Reich significaria uma submissão política à Alemanha e colocaria em risco o próprio trabalho realizado por estes clubes no Brasil.”. A década de 1930 marca, portanto, o enfraquecimento do ideal de germanidade que foi construído desde que foi fundada a primeira associação em Joinville (SC).
Para os imigrantes alemães, a ginástica estava tão atrelada ao ideal de germanidade quanto à língua. Enfraquecendo uma, a outra também acabou perdendo força. Resgatar parte desta história é de suma importância, considera a professora Carmem. “Evelise estudou as primeiras décadas do século 20 nessa perspectiva básica de que a ginástica fazia parte da vida daqueles que chegavam aqui vindos pelas ondas migratórias. Trata-se de um dos poucos estudos que elegem essas práticas corporais associativistas como elemento consistente das comunidades de imigrantes”.