Assassinato de Chico Mendes faz 30 anos
Quando faltavam três dias para o Natal de 1988, os olhos de todo o planeta se voltaram para uma cidadezinha pobre e violenta dos confins do Brasil: Xapuri (AC), cercada pelo inferno verde da Floresta Amazônica, a poucos quilômetros da fronteira com a Bolívia. O que pôs Xapuri no centro do mundo foi o assassinato de Chico Mendes.
Foto:Adrian Cowell O lider seringueiro Chico Mendes, em foto de 1987, em Xapuri (AC). |
Ricardo Westin/ArquivoS/Ag.Senado
O seringueiro, ambientalista e líder sindical foi executado com um tiro de espingarda no quintal de sua casa, na noite de 22 de dezembro. Ele tinha completado 44 anos uma semana antes. A polícia logo prendeu os responsáveis pelo crime, dois fazendeiros, que foram condenados a quase 20 anos na cadeia.
Documentos históricos mantidos sob a guarda do Arquivo do Senado contêm os discursos feitos pelos senadores da época e ajudam a mostrar o significado do episódio ocorrido 30 anos atrás: o assassinato de Chico foi o grande divisor de águas da questão ambiental não só no Brasil, mas no mundo. “Hoje os sinos dobram por esse líder que só passamos a conhecer depois de sua morte”, discursou o senador Leite Chaves (PMDB-PR).
Chico, de fato, era um ilustre desconhecido. Fazia uma década que, de Xapuri, ele pregava contra a destruição da Amazônia sem ser ouvido. Em Brasília, o poder público ignorava sua existência. A imprensa do eixo Rio-São Paulo tinha vagas informações sobre Chico Mendes e preferia não publicá-las. Ele era filho e neto de seringueiros. Desde criança, acompanhava o pai nas incursões na mata para extrair látex. O fluido esbranquiçado da seringueira é a matéria-prima da borracha.
Terra de iletrados
Foi só adulto que Chico aprendeu a ler e escrever. Numa terra de iletrados, ele foi rapidamente alçado ao posto de líder. No fim da década de 1970, ajudou a criar em Xapuri um sindicato de seringueiros, do qual foi presidente até ser assassinado. “Aqui nos sentimos um pouco culpados por sua morte”, continuou o senador Leite Chaves. Acabamos de fazer uma Constituição que abre caminhos a todos. Demos até aos índios segurança de suas reservas, mas não garantimos aos seringueiros o seu habitat, onde têm vivido por gerações.
A Constituição havia sido promulgada em outubro de 1988, pouco antes do assassinato. Chico Mendes chegou a participar de debates da Assembleia Nacional Constituinte referentes ao meio ambiente. Como seu nome não tinha peso, acabou sendo só mais um no meio dos militantes das diversas causas sociais que buscavam ser ouvidos.
Foto:Reprodução No início, Chico lutava só pelos seringueiros; com o apoio de ONGs estrangeiras, passou a defender o meio ambiente. |
“Pulmão do mundo”
A invisibilidade dentro do Brasil contrastava com o estrelato no plano internacional. Desde 1986, Chico recebia com frequência, em sua precária casa de madeira em Xapuri, diretores de ONGs ambientalistas da Europa e dos Estados Unidos e correspondentes dos jornais mais influentes do mundo, como o New York Times, que se referia a ele como “Mr. Mendes”. O mundo já se mostrava incomodado com os desmatamentos e os incêndios na Amazônia, que avançavam com fúria, para abrir terra para criações de gado e plantações. O clichê que mais se ouvia era o de que a floresta precisava ser salva porque era o “pulmão do mundo”.
A destruição da selva era, na prática, uma política de Estado no Brasil. A ditadura militar havia dado incentivos financeiros para a instalação em massa de fazendeiros na Amazônia. O senador Mário Maia (PDT-AC) afirmou: “Com seu trabalho obstinado e fecundo, Chico Mendes esperava desmentir o discurso ecológico do governo. Na verdade, o que é estimulado é o desmatamento generalizado. Ele presenciou em muitas situações a política do governo protegendo o desmatamento e dando guarida aos matadores de seringueiros”.
Numa frente, o governo buscava criar latifúndios que impedissem focos de subversão comunista na mata semelhantes à Guerrilha do Araguaia. Em outra frente, estimulava o povoamento da selva de modo a desarticular uma suposta conspiração externa que tomaria a Amazônia do Brasil, colocando-a sob domínio internacional. “Que o símbolo de Chico Mendes sirva de alerta e advertência para a nação”, discursou o senador Antônio Luiz Maya (PDC-TO). “Somos nós, o governo e o povo brasileiro, que temos de cuidar da Amazônia, defendê-la da ganância alheia, preservar suas florestas imensas, sua variedade das espécies vegetais, animais e minerais e sua imensurável bacia hídrica, com enorme potencial de navegação e energia hidráulica”.
Motosserra
A primeira providência dos fazendeiros assim que se apossavam da floresta era ligar a motosserra, para desespero dos seringueiros. Além do látex, as famílias dos extrativistas dependiam da castanha, do babaçu, do mel etc. para sobreviver. Em reação, Chico passou a organizar barreiras humanas que, pacificamente, punham-se na frente dos peões contratados pelos fazendeiros e impediam a derrubada da mata. Foi então que Chico Mendes começou a despertar a ira dos latifundiários.
Em 1985, os seringueiros fizeram em Brasília o seu primeiro grande encontro fora da Amazônia para chamar a atenção do governo para o risco que corriam caso as políticas públicas para a floresta não fossem repensadas. O evento ocorreu na Universidade de Brasília. Foi graças ao evento que ONGs ambientalistas internacionais tomaram conhecimento da existência de Chico Mendes. “A UnB se orgulha de ter sido a plataforma que ajudou a projetar Chico Mendes no cenário mundial”, diz hoje o senador Cristovam Buarque (PPS-DF), que na época era o reitor da universidade. A aliança que ali se formava mudou radicalmente os destinos das duas partes.
As ONGs europeias e americanas encontraram em Chico o rosto humano que faltava para justificar a preservação do meio ambiente. Até então, elas pregavam a defesa da natureza como um fim em si, sem relação com a vida das pessoas. O ambientalismo, por isso, não empolgava. Para muitos, era um devaneio de hippies que abraçam árvore. Chico, que vinha lutando apenas para garantir a sobrevivência dos seringueiros, sem ter o meio ambiente como foco, transformou-se num ecologista e passou a contar com a organização profissional, o know-how político e a visibilidade mundial das ONGs.
Os novos aliados levaram Chico Mendes ao exterior para que gritasse contra o desmatamento da Amazônia. Nos Estados Unidos, recebeu um prêmio da ONU e falou no Congresso Nacional. Suas denúncias foram suficientes para que o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento parassem de financiar o asfaltamento da BR-364, rodovia que rasga a floresta no Acre. A lista dos que o odiavam aumentou.
Oligarquia
Em 1988, Chico já era jurado de morte e tinha escolta 24 horas por dia. Na noite de 22 de dezembro, contudo, os policiais militares incumbidos de não desgrudar os olhos dele jogavam dominó dentro da casa do seringalista e não puderam evitar o assassinato. “A oligarquia sabe que pode matar e que as autoridades não vão impedi-la ou puni-la, já que grande parte delas pertence à mesma classe, a classe dos grandes proprietários de terra”, afirmou o senador Aluizio Bezerra (PMDB-AC).
A repercussão internacional foi forte e imediata. Sacudida pelas notícias publicadas no exterior, a imprensa nacional finalmente se deu conta do valor de Chico Mendes e correu para noticiar o assassinato e apresentar ao Brasil o drama dos seringueiros. “As autoridades brasileiras foram coagidas pelo clamor internacional a sair em busca dos assassinos”, constatou o presidente do Senado, Nelson Carneiro (PMDB-RJ).
Uma das responsáveis por aproximar Chico das ONGs estrangeiras foi a antropóloga Mary Allegretti. Ela diz que Chico, sem querer, fez uma revolução no mundo. “Depois vieram a Eco 92, o Protocolo de Kyoto, o Acordo de Paris. O meio ambiente virou prioridade. O mundo passou a se preocupar de fato, criou tecnologias limpas, mudou hábitos de consumo. Pouca gente se dá conta, mas o mundo mudou drasticamente nestes 30 anos. Foi o assassinato de Chico Mendes que abriu caminho para todas essas mudanças”.